segunda-feira, 26 de março de 2018

O Sebastianismo. José Van Den Besselaar. «Sabemos que, por duas vezes, Bandarra se deteve algum tempo em Lisboa (ca. 1531 e em 1539), onde era muito procurado pela ‘gente de nação’»

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«(…) Dotado de memória fidelíssima, sabia de cor longos trechos da Escritura Sagrada, sobretudo dos livros proféticos. Quando, depois de restituir o livro ao seu dono, já não se lembrava de um texto bíblico, recorria ao dr. Álvaro Cardoso ou ao clérigo Bartolomeu Rodrigues, que tinham uma Bíblia latina e com ela lhe refrescavam a memória. Assim chegou a ser um oráculo em assuntos bíblicos, sobretudo entre os cristãos-novos, que eram muito numerosos na Beira. O sapateiro devia ter também grandes conhecimentos das profecias atribuídas a Santo Isidoro, através das Coplas do cartuxo castelhano Pedro Frias e outros versejadores espanhóis, entre eles, o frade bento Juan Rocacelsa, monge de Monserrate. Estas coplas convenceram-no da vinda de um Rei Encoberto, predestinado para desbaratar o Império Otomano e estabelecer a Monarquia Mundial. É muito provável que Bandarra tivesse chegado à ideia de compor as suas trovas tomando por exemplo as coplas do país vizinho, tanto mais que estas designavam muitas vezes o futuro Imperador como Infante de Portugal. O sapateiro era sem dúvida, um homem extraordinário, que aliava à memória fabulosa uma grande faculdade assimiladora e o talento de fazer versos em estilo popular.
As suas profecias rimadas, muito mais bíblicas e, igualmente, mais patrióticas que as dos seus modelos castelhanos, difundiram-se rapidamente pelo país, não tardando a encontrar leitores até na capital do Reino. Os cristãos-novos, que já antes o tinham consultado como uma espécie de rabi, passaram agora a venerá-lo como um profeta solidário com eles nas suas esperanças messiânicas. Sabemos que, por duas vezes, Bandarra se deteve algum tempo em Lisboa (ca. 1531 e em 1539), onde era muito procurado pela gente de nação. O alvoroço que aí causava não podia deixar de despertar as suspeitas da Inquisição (maldita) recém-estabelecida. O poeta foi preso na sua terra e levado para Lisboa (1540). A Mesa ouviu várias testemunhas e, a 3 de Outubro de 1541, impôs-lhe um castigo relativamente brando: o de abjurar solenemente as suas trovas na procissão do auto-de-fé no dia 23 do mesmo mês. Pela sentença se pode ver que Bandarra não era acusado de judaísmo, nem sequer era pessoa suspeita como cristão-novo. O que se lhe imputava era causar alvoroço entre os cristão-novos com as suas trovas, que eles tendiam a interpretar em sentido judaico. Além disso, era intolerável que um homem sem letras se arvorasse em intérprete dos livros sagrados. A lição que a Mesa lhe queria incutir era simplesmente esta: Sapateiro, não vás além do calçado!. A Mesa ordenou ainda que qualquer pessoa que tivesse em seu poder as trovas do dito Bandarra as apresentasse ao Santo Ofício (maldito) dentro de certo prazo.
A partir de 1541 não se soube mais nada do sapateiro de Trancoso. Segundo uma opinião muito divulgada teria falecido por volta de 1550. Mas, como já observou Diogo Barbosa Machado na sua Biblioteca Lusitana, a data da sua morte deve ser posterior a 1556, porque a 23 de Março deste ano foi confirmado na dignidade episcopal da diocese da Guarda João Portugal, a quem Bandarra enviou um exemplar das suas Trovas com uma dedicatória elogiosa em versos. Se aceitarmos a dedicatória como autêntica, e creio não haver motivos para lhe pôr em dúvida a autenticidade, devemos concluir que o profeta, uns quinze anos depois da solene abjuração das suas trovas, no foro íntimo ainda acreditava nelas, e que o bispo da Guarda, homem brioso e até disposto a provocar as autoridades, se dignou aceitá-las». In José Van Den Besselaar, O Sebastianismo, História Sumária, Instituto Camões, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Biblioteca Breve, volume 110, Livraria Bertrand, 1987.

Cortesia de CVCamões/JDACT