domingo, 4 de março de 2018

Histórias Secretas de reis portugueses. Alexandre Borges e Hugo Rosa. «Explicou que tal não passava de uma perigosa mentira, que Afonso nada mais nutria por Leão e Castela de que uma imensa admiração e respeito»

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O castigo maternal
«Está protegida pelos séculos a verdadeira história do primeiro rei português. Aquele que tenha sido e aquilo que tenha feito Afonso Henriques jamais poderá ser trazido à luz do dia no esplendor da real decorrência dos factos. Dele se diz que era um gigante de quase dois metros de altura, que fez nascer um reino à força quase exclusiva da sua imensa bravura, que incendiou batalhas à frente das suas tropas, empunhando uma espada imensa que Sebastião I pediria emprestada e faria consigo desaparecer, mais de 400 anos depois, na infame jornada de Alcácer Quibir. De tudo isto, que será verdade? Que pormenores foram gerados apenas pelo imaginário colectivo de um país necessitado de heróis? Ter-se-á o jovem nobre tornado Afonso I pela dinâmica de um processo que o levou a bater em dona Teresa, a própria mãe? Será este somente um rodapé ficcional acrescido ao texto verídico pela voz popular? É talvez, hoje, impossível discernir. Resta-nos juntar os pedaços da lenda aos da História e perscrutar, senão a verdade, pelo menos um sentido que atravesse os mistérios de um tempo iniciático, envolto nas trevas comummente atribuídas às memórias medievais.
Afonso perdeu o pai bem antes de se poder aperceber do que esse acontecimento implicava para o seu próprio destino. O conde Henrique falecia contava o filho três inofensivos anos, ficando o Condado Portucalense entregue ao arbítrio da esposa, dona Teresa. O passar dos anos e o crescimento da criança a fazer-se homem revelaria uma dona Teresa não tanto em sintonia com o desejo do marido defunto de fazer o condado descer pelas terras dos sarracenos, mas antes em aproximá-lo da Galiza. Ao jovem de 11 anos deparava-se, sobretudo, um outro dado que não podia compreender: a mãe parecia ter esquecido, rapidamente, a memória do pai e, depois de outros envolvimentos, perdia-se de amores por Fernão Peres Trava, um nobre galego com o qual, se não casou, terá, pelo menos, passado a viver maritalmente em Coimbra, numa relação classificada de incestuosa pelas tábuas de valores da época, tendo em conta o anterior relacionamento de Teresa com Bermudo, outro membro do clã Trava, irmão do seu novo esposo.
Estávamos em 1121. A ira avolumava-se dentro do infante, que sentia, não se sabe se nos genes, se no resto difuso de uma recordação efectiva, o ímpeto de prolongar os anseios paternos. É neste percurso que se dirige sozinho, no dia de Pentecostes, à Catedral de Zamora, território leonês, e se arma cavaleiro, ainda adolescente, acabado de completar 16 anos, a maioridade política de então, num gesto elucidativo do seu carácter destemido e solitário, inspirado no que haviam feito outros futuros monarcas da História, à espera da ordem de ninguém para avançar quando quer que o decidissem fazer. Subiu ao altar de São Salvador e colocou sobre o seu corpo as armas militares que de lá retirou. Não o fizeram o seu pai morto, a sua mãe apartada, o arcebispo de Braga, possivelmente o inspirador de tal acto. Uma espada, um escudo, um elmo, um cinto, uma loriga.
A distância entre mãe e filho agravava-se, até que, pouco tempo mais tarde, no Verão de 1127, decidiam-se descongestionar os seus poderes e concordava-se que Afonso governasse até ao Douro, a partir de Guimarães, e dona Teresa daí ao Mondego, com sede na mesma cidade em que vivia com Ferrão Peres Trava. Mas era claro para qualquer um deles que tal não bastaria para assegurar a paz eterna entre as partes e já as classes sociais tomavam partido por uma ou outra das facções. A tensão acumulava-se e Afonso nada fazia por evitá-la. Estávamos quase em 1128 e chega aos ouvidos de Afonso VII, rei de Leão e Castela, o rumor de que o príncipe granjeava já mais poder do que aquele que alguma vez se esperaria em tão pouco tempo, escapando ao domínio da mãe e desejando fazer frente à sombra castelhana. Apercebendo-se da gravidade que constituía o conhecimento de tal afronta e do cerco que já se montava em torno do castelo de Guimarães, apressou-se o aio Egas Moniz em viajar até àquele território para falar ao rei Afonso VII, tentado dissuadi-lo de qualquer intuito de anular o constrito círculo em que ordenava Afonso Henriques. Explicou que tal não passava de uma perigosa mentira, que Afonso nada mais nutria por Leão e Castela de que uma imensa admiração e respeito e que, como prova disso mesmo, ali se deslocaria para beijar a mão ao senhor de tão grandioso poderio militar.
Contudo, de regresso ao Castelo de Guimarães e confessando a sua acção, teve Egas Moniz de se curvar, pela primeira vez, diante da fúria do infante. O orgulho do jovem Afonso jamais se poderia compadecer de semelhante cobardia e, ainda que tenha perdoado ao seu amado aio, negar-lhe-ia, liminarmente, qualquer hipótese de, alguma vez, vir a corresponder a tal promessa. Pelo contrário, tornar-se-ia ainda mais feroz e célere nos seus objectivos de expansão e preparava-se, desde logo, para o seu primeiro combate, um confronto difícil e inqualificável que, mais do que uma questão bélica e política, colocava frente a frente um filho e uma mãe». In Alexandre Borges e Hugo Rosa, Histórias Secretas de reis portugueses, Oficina do Livro, 2012, ISBN 978-989-555-663-2
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