«(…) Estava pois aberto o caminho
à sedição, orientado em parte, se não totalmente, por dois frades franciscanos
que, empunhando toscos crucifixos de madeira, foram para as ruas aos gritos de
heresia!, heresia!, instigando os crentes a matar os malvados judeus. Num
ápice, centenas de cristãos, a que entretanto se juntaram escravos, moinantes,
indigentes e muitos marinheiros estrangeiros de passagem por Lisboa, acorreram enlouquecidos
ao bairro da judiaria onde era mais fácil a captura dos inimigos de Jesus,
responsáveis para sempre pelo crime da crucifixão. Muitos foram apanhados na
rua e logo conduzidos para as fogueiras já ateadas no Rossio e na Ribeira; outros
foram mortos à punhalada, ou desmembrados a golpes de machado, ou lançados das
janelas das suas próprias casas. À ordem dos padres, cada vez em maior número
nas ruas da cidade, respondiam os criminosos, desembestados, contra as
mulheres, violando-as primeiro, cortando-lhes os dedos e os pulsos depois, para
se apoderarem dos anéis e das pulseiras. E até as crianças de colo não escaparam
à fúria da horda insana. Casos houve em que os assassinos seguravam as
criaturas pelos pés para as arremessar contra as paredes, esmagando-lhes os
crânios. Nessa onda de demência colectiva, alguns padres esfaquearam as
mulheres que se tinham refugiado nas igrejas e capelas, enquanto outros, não
menos celerados que os seus pares, chegaram ao ponto de arrancar aos altares as
imagens de santos e diversos relicários de madeira para servirem de combustível
às fogueiras. Ora, foi na crista deste tumulto, que se arrastou por três dias e
três noites, que Diogo Pacheco e Raquel Aboab se conheceram. Ele tinha trinta e
dois anos; ela acabara de completar treze. Ele vivia perto da ribeira, numa casa
rica; ela morava com os pais, no bairro da judiaria, numa casa pobre. E foi
precisamente numa rua adjacente a este bairro que, ao fim da tarde do segundo
dia de perseguições, Diogo Pacheco, já então convertido à decência humana e à
tolerância religiosa, encontrou a pequena Raquel a fugir e a chorar de medo:
tinha acabado de ver um grupo de cinco abades a lançar os pais à fogueira.
Nessa altura o jurisconsulto tomou-a pela mão, escondeu-a sob o capeirote e
conduziu-a à pressa a casa de um amigo, professor de Leis, que residia perto do
local. Fora salva uma criança.
Em que pensas?, perguntou Diogo
Pacheco a Raquel Aboab, depois do longo período de silêncio em que ambos haviam
mergulhado. Raquel suspirou fundo, voltou a ajeitar a cabeça sobre o seu peito
e disse que estava a discorrer sobre os conturbados dias daquele Abril de trágica
lembrança, dias esses que, no seu entendimento, nunca deviam ter existido no
calendário dos homens, quanto mais no calendário do povo cristão. Mas depois
também ela, cheia de curiosidade, quis saber a que reflexões se entregara o
fidalgo. Estranhamente, às mesmas que tu, adorada Raquel, confessou. E após uma
breve pausa prosseguiu: não sei se algum dia vieste a saber que Sua Alteza Real
mandou enforcar os dois frades que dirigiram a revolta iniciada na igreja de S.
Domingos, e mais uns tantos, cerca de trinta, que fizeram parte da matança... Uma
matança de milhares, não foi?..., interrompeu ela. Sim, dois mil, confirmou
ele. Que loucura, senhor! Que loucura! Deus saberá castigar os que participaram
no desvairado morticínio, garantiu o nobre. Raquel ergueu a cabeça, fixou os
olhos d fidalgo Diogo, e, com serena coragem e cruel frieza, lembrou que antes
desses dias infames já se haviam registado em Lisboa muitos actos de perseguição
aos judeus, quase todos a mando de Sua Alteza Real Manuel I, ou por ele
consentidos. E se Deus estava atento ao trabalho criminoso de uns, também não
deixaria, certamente, de estar à ordem perversa de outro.
Talvez um dia te conte por que
motivo Sua Alteza, de quem sou amigo e fiel vassalo, permitiu ao povo e ao
clero alguns excessos nos primeiros anos do seu divino reinado, prometeu o
homem, tentando dominar a custo o desconforto pelo discurso impiedoso da jovem
judia. E, calmo, concluiu: Sua Alteza Real era, e continua a ser, muito
tolerante com o povo hebreu mas, por mais benigno que fosse o seu coração, e é,
não se podia esquecer de que em primeiro lugar estavam os interesses de
Portugal. Nisso, como em tudo, estive constantemente a seu lado. Mesmo quando
el-rei mandou enforcar os frades que dirigiram a matança? Isso nem se pergunta,
Raquel, atalhou Diogo Pacheco. Não só concordei com Sua Alteza como lhe propus
que fizesse o mesmo a um grupo de magistrados municipais que, na semana
anterior ao tumulto da Pascoela, prendeu e matou uma família judia quando esta
celebrava o Seder na própria casa em que vivia. E sabes o que lhes aconteceu?
Pagaram o crime com a vida». In José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus,
Oficina do Livro Editor, 2008, ISBN 978-989-555-364-8.
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