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Ao longo dos cerca de trinta anos em que ocupou o
cargo de cronista-mor, Zurara surge como autor de quatro textos distintos,
orientados segundo o propósito de contar uma nova etapa na história do reino,
isto é, o que a historiografia convencionou chamar o processo de expansão,
mas que os homens de Quatrocentos
conceberam como as guerras de Marrocos ou a descoberta de novas terras. Ao
mesmo tempo, existia uma espécie de projecto contínuo no que toca à redacção da
crónica geral do reino, como fica patente em várias partes das obras
aqui em análise: como na cronyca do Regno he contheudo, como na coronica gerall
do rregno mais largamente podeys achar ou como mays compridamente acharees na
cronica do Regnado deste Rey dom Affomso [V]. Enquanto cronista-mor, Zurara
estaria encarregado de ir reunindo materiais e provavelmente de ir redigindo o
que seria a crónica geral do reino, mesmo que esta, tanto quanto se sabe, não
tivesse visto a luz do dia senão já no século seguinte pela mão de Rui Pina.
Essa função primordial seria executada em simultâneo com a feitura do conjunto
de textos em análise neste artigo, sobre os quais é possível detectar algumas
indicações acerca das fontes reunidas pelo autor e do tratamento que lhes terá
dado. Creio aliás, como tentarei demonstrar, que uma parte delas poderá ajudar
a explicar a forma de algumas das crónicas.
A
primeira tipologia consiste nos testemunhos orais, dos quais Zurara faz
explícita menção em várias passagens da sua obra. É o caso da importância dos
testemunhos dos infantes Henrique e Pedro sobre a conquista de Ceuta e também
de outros depoimentos que hoje se apresentam anónimos, mas de quem o cronista
diz ter recebido avisamento. No caso da elaboração da Crónica de
D. Duarte de Meneses é bem possível que o peso dos testemunhos
orais tenha sido ainda mais significativo, uma vez que Zurara esteve cerca de
um ano no Magrebe (partiu em 1467, tendo tido certamente a oportunidade de
entrevistar muitos dos que conheceram e acompanharam o capitão de Alcácer nas
suas lides bélicas. Essa estadia podia até ter permitido o contacto com algum
tipo de documentação que não se encontraria na Torre do Tombo ou noutras
instituições com sede em Lisboa e que albergavam arquivos potencialmente
interessantes, como é o caso da Casa de Ceuta. Numa passagem da crónica em
honra de Duarte Meneses, Zurara alude à estratégia utilizada pelo capitão para
controlar as aldeias dos vales contíguos a Alcácer. A certa altura, Duarte
logrou que essas aldeias lhe pagassem tributo, especificando o cronista que os
moradores de uma determinada terra ao tempo que eu screuya esta storea eram
trezentos casados e mais os que pagauam tributo. Sabendo que se trata de um
mero indício que apenas permite avançar suposições, é pelo menos lícito colocar
a possibilidade de Zurara ter consultado uma espécie de arrolamento desses
vizinhos, talvez guardado no paço do capitão de Alcácer, local a partir de onde
se exercia a autoridade sobre as terras em redor da praça. O mesmo se diga
relativamente a uma passagem da crónica dedicada a Pedro Meneses. Reportando-se
às despesas efectuadas pelo capitão aquando da estada na cidade dos infantes
Henrique e João, Zurara afirma que achou per seus lyvros, isto é,
provavelmente um registo contabilístico da casa de Pedro Meneses, que a despesa
com carnes e dádivas subiu a 6756 dobras.
As
fontes mencionadas mais frequentemente são, porém, escritos já compilados e
trabalhados, e nos quais Zurara se baseou para elaborar a sua redação. É o caso de referências anónimas como aquelles
que os feitos de Çeepta escreverão, ou alguuns
screuerom em seus scriptos. Noutros casos, Zurara indica autores
ou materiais específicos. Na Crónica da Guiné
refere por três vezes huu Affomso cerueira que esta estorya primeiramente
quis ordenar, enquanto na Crónica de D. Duarte de
Meneses cita um livro dos
feitos de Fernando Noronha, não aclarando, contudo, a utilização que dele terá feito.
Seja como for, esta última e pequena referência deve sublinhar a evidência de
que muito do que foi escrito na época não chegou até ao presente. É por isso
plausível admitir a existência de outros textos, nomeadamente de proveniência
nobiliárquica, que circulariam e podiam ter sido conhecidos e utilizados pelo
autor em questão, mas cuja existência é totalmente obscura para a crítica
moderna». In Miguel Aguiar, As crónicas de Zurara:
a corte, a aristocracia e a ideologia cavaleiresca em Portugal no século XV, Revista
Medievalista, Número 23, Janeiro-Junho 2018, ISSN 1646-740X.
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