quarta-feira, 7 de março de 2018

Os Forais Tomarenses de 1162 e 1174. Manuel S. A. Conde. «O tempo e o modo desta Tomar distante, primordial, são-nos revelados através de um discurso escrito»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Em Novembro de 1162, Gualdim Pais, mestre da Ordem do Templo de Salomão, donatário do território de Ceras, outorgava aos moradores; de Tomar, maioribus et minoribus, uma carta de garantia do direito das suas herdades, de foro e serviço. Esta primeira carta de foral, concedida ao lugar que, pouco tempo antes, preterira Ceras na função de cabeça do território templário, subscrita por figuras relevantes conto o alferes-mor do reino Pero Pais Maia (desempenhou aquelas funções entre 1147 e 1169, exilando-se em Leão depois do desastre de Badajoz, para regressar à corte portuguesa desde a morte de Afonso Henriques até ao seu falecimento, ocorrido, talvez, em 1189), o mordomo da corte Gonçalo Mendes Sousa (o Sousão), exerceu o cargo de depífero, ou mordomo-mor, entre 1157 e 1167, o conde Rodrigo e os alcaides conimbricense e escalabitano, é o ponto de partida da institucionalização dos órgãos de poder local, no respeito da autonomia do município.
Decorrida pouco mais de uma década, em Junho de 1174, o mesmo mestre promulgava nova carta de garantia. No extenso rol de confirmantes e testemunhas que o subscrevem, figuram diversos freires, alguma nobreza de primeiro plano, os condes Fernando e Afonso, o dapífero Pero Fernandes de Bragança (exerceu o cargo entre 1169 e 1175, permanecendo na corte até 1194), Paio Soares Paiva (o Romeu), vivo entre 1171 e 1177, e o alcaide de Coimbra (Pero Garcia), nobres de menor gabarito e diversas figuras locais, entre as quais merecem realce o capelão frei João Garcia, o alcaide Paio Nunes, e os justiças Paio Aires e Pero Rodrigues. Esta carta surgia como um complemento da anterior, reportando-se basicamente a questões judiciais em que aquela era incipiente, mas ao mesmo tempo consolidava a autonomia concelhia e abria ao poder local novas esferas de competências. Não se limitavam as cartas à garantia solene, por parte da entidade senhorial, do respeito pelos homens e pelos bens, e à definição de deveres e servidões. Traduziam também a perdurável anuência senhorial a dadas formas de viver colectivo, o respeito pela comunidade organizada em concelho, o reconhecimento público, formal, do poder local e dos seus órgãos. Assim, as cartas reflectem-nos o contexto espácio-temporal e as estruturas sócio-culturais que as engendraram, os problemas que nesse contexto eram equacionados pela entidade senhorial e a maneira como esta entendia resolvê-los, com a colaboração da autarquia. O tempo e o modo desta Tomar distante, primordial, são-nos revelados através de um discurso escrito. Este não corresponde exactamente às formas dialectais empregues pelos tomarenses comuns, no seu trato quotidiano: um romance lusitano-moçárabe, de forte influência muçulmana. Insere-se, antes, no que podemos designar latim escribário, modalidade da língua latina praticada pelos escribas letrados, ao elaborarem os documentos dos respectivos cartórios monásticos e eclesiásticas. Tal escrita deixa, contudo, entrever, aqui e além, um pouco do dialecto maioritariamente empregue como instrumento de comunicação.
É, sem dúvida, fundamental, a reflexão em torno do municipalismo e da experiência concelhia da nossa Idade Média. Não pretendemos, todavia, encetá-la aqui. Queremos tão-só proceder à edição dos forais tomarenses, nas suas versões latina, seguida pela respectiva tradução, e portuguesa, acompanhando esta de estudo sumário da gênese do município tomarense, inserida no contexto em que se manifestou, de sucinta apreciação do conteúdo das duas cartas, e, por último, de breve exame do léxico a que as mesmas recorrem, procurando destacar dos textos latinos alguns aspectos do falar português do terceiro quartel do século XII.

Contexto espácio-temporal
No ocidente peninsular cristão, detectam-se, a partir do século X, rastos da organização concelhia. Concessões régias, ou senhoriais, facultavam, ou reconheciam, um certo grau de auto-organização local das populações e alguns privilégios de natureza fiscal e judiciária (a hipótese da origem revolucionária dos concelhos foi admitida dubitativamente por Alexandre Herculano, e, posteriormente retomada, reformulada e convertida em tese por Borges Coelho)». In Manuel S. A. Conde, Os Forais Tomarenses de 1162 e 1174, Casa de Sarmento, Centro de Estudos do Património, Universidade do Minho, Revista Guimarães, nº 106, 1996.

Cortesia de CasaSarmento/RGuimarães/JDACT