«Em Novembro de 1162, Gualdim
Pais, mestre da Ordem do Templo de Salomão, donatário do território de Ceras,
outorgava aos moradores; de Tomar, maioribus et minoribus, uma carta de
garantia do direito das suas herdades, de foro e serviço. Esta primeira carta
de foral, concedida ao lugar que, pouco tempo antes, preterira Ceras na função de
cabeça do território templário, subscrita por figuras relevantes conto o
alferes-mor do reino Pero Pais Maia (desempenhou aquelas funções entre 1147 e
1169, exilando-se em Leão depois do desastre de Badajoz, para regressar à corte
portuguesa desde a morte de Afonso Henriques até ao seu falecimento, ocorrido,
talvez, em 1189), o mordomo da corte Gonçalo Mendes Sousa (o Sousão), exerceu o
cargo de depífero, ou mordomo-mor, entre 1157 e 1167, o conde Rodrigo e os alcaides
conimbricense e escalabitano, é o ponto de partida da institucionalização dos
órgãos de poder local, no respeito da autonomia do município.
Decorrida pouco mais de uma
década, em Junho de 1174, o mesmo mestre promulgava nova carta de garantia. No
extenso rol de confirmantes e testemunhas que o subscrevem, figuram diversos freires,
alguma nobreza de primeiro plano, os condes Fernando e Afonso, o dapífero Pero
Fernandes de Bragança (exerceu o cargo entre 1169 e 1175, permanecendo na corte
até 1194), Paio Soares Paiva (o Romeu), vivo entre 1171 e 1177, e o alcaide de
Coimbra (Pero Garcia), nobres de menor gabarito e diversas figuras locais,
entre as quais merecem realce o capelão frei João Garcia, o alcaide Paio Nunes,
e os justiças Paio Aires e Pero Rodrigues. Esta carta surgia como um
complemento da anterior, reportando-se basicamente a questões judiciais em que
aquela era incipiente, mas ao mesmo tempo consolidava a autonomia concelhia e abria
ao poder local novas esferas de competências. Não se limitavam as cartas à
garantia solene, por parte da entidade senhorial, do respeito pelos homens e
pelos bens, e à definição de deveres e servidões. Traduziam também a perdurável
anuência senhorial a dadas formas de viver colectivo, o respeito pela comunidade
organizada em concelho, o reconhecimento público, formal, do poder local e dos
seus órgãos. Assim, as cartas reflectem-nos o contexto espácio-temporal e as
estruturas sócio-culturais que as engendraram, os problemas que nesse contexto
eram equacionados pela entidade senhorial e a maneira como esta entendia
resolvê-los, com a colaboração da autarquia. O tempo e o modo desta Tomar
distante, primordial, são-nos revelados através de um discurso escrito. Este
não corresponde exactamente às formas dialectais empregues pelos tomarenses
comuns, no seu trato quotidiano: um romance lusitano-moçárabe, de forte
influência muçulmana. Insere-se, antes, no que podemos designar latim escribário,
modalidade da língua latina praticada pelos escribas letrados, ao elaborarem os
documentos dos respectivos cartórios monásticos e eclesiásticas. Tal escrita
deixa, contudo, entrever, aqui e além, um pouco do dialecto maioritariamente empregue
como instrumento de comunicação.
É, sem dúvida, fundamental, a
reflexão em torno do municipalismo e da experiência concelhia da nossa Idade
Média. Não pretendemos, todavia, encetá-la aqui. Queremos tão-só proceder à
edição dos forais tomarenses, nas suas versões latina, seguida pela respectiva tradução,
e portuguesa, acompanhando esta de estudo sumário da gênese do município
tomarense, inserida no contexto em que se manifestou, de sucinta apreciação do
conteúdo das duas cartas, e, por último, de breve exame do léxico a que as
mesmas recorrem, procurando destacar dos textos latinos alguns aspectos do
falar português do terceiro quartel do século XII.
Contexto
espácio-temporal
No ocidente peninsular cristão,
detectam-se, a partir do século X, rastos da organização concelhia. Concessões
régias, ou senhoriais, facultavam, ou reconheciam, um certo grau de
auto-organização local das populações e alguns privilégios de natureza fiscal e
judiciária (a hipótese da origem revolucionária dos concelhos foi admitida
dubitativamente por Alexandre Herculano, e, posteriormente retomada, reformulada
e convertida em tese por Borges Coelho)». In Manuel S. A. Conde, Os Forais Tomarenses
de 1162 e 1174, Casa de Sarmento, Centro de Estudos do Património, Universidade
do Minho, Revista Guimarães, nº 106, 1996.
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