Bárbaros.
Cristãos. Muçulmanos
«(…) Sem a invenção do leme axial e os
aperfeiçoamentos do velame, Cristóvão Colombo não poderia ter chegado à
América. Portanto, o acontecimento que, por convenção, dá início à era moderna
e encerra a Idade Média nasce na própria Idade Média. Por causa deste conjunto de
inovações técnicas depois do ano 1000, os historiadores têm falado de uma primeira
revolução industrial. O que ocorre é uma revolução das artes e ofícios, mas
capaz de pôr termo ao mito das idades das trevas. Com efeito, depois do ano
1000 florescem cada vez mais centros urbanos dominados por grandes catedrais; a
tradicional divisão da sociedade em clero, guerreiros e camponeses, que caracterizava
a alta Idade Média, dissolve-se com o nascimento de uma burguesia citadina
dedicada aos ofícios e ao comércio e, do mesmo modo que a poesia estava relacionada
desde o século XII com trovadores laicos, um intelectual como Dante é já plenamente
o modelo do escritor moderno. Nas novas línguas vernáculas nascem algumas das
maiores obras-primas da literatura de todos os tempos, da poesia trovadoresca
aos romances do ciclo bretão, da Canção
dos Nibelungos ao Cantar de Mio
Cid e à Divina Comédia.
Nasce a Universidade e, quer na Faculdade das Artes quer na Faculdade de
Teologia, ensinam e escrevem grandes mestres como Abelardo, Alberto Magno,
Roger Bacon e Tomás de Aquino. A actividade de cópia e miniatura dos
manuscritos muda-se dos mosteiros para as ruas próximas das universidades recém-nascidas;
os artistas já não trabalham apenas para igrejas e conventos, mas também para
os palácios comunais, onde representam cenas da vida urbana. Formam-se os
Estados nacionais europeus e reafirma-se, ao mesmo tempo, a ideia do império. Para
terminar, convém recordar um facto que tende a ser esquecido: também faz parte
da Idade Média aquele século de renascimento que foi o décimo quinto. É certo que
podia convencionar-se pôr termo à Idade Média muito antes do descobrimento da América,
talvez na invenção da imprensa, ou até antes, colocando o século XV, e, como
acontece noutros países, o próprio século XIV de Giotto, Petrarca e Boccaccio, no
Renascimento (que, por outro lado, a historiografia mais recente tende a
considerar já consumado na morte de Rafael, ou seja, em 1520). Mas ao falar-se
de renascimento depois do ano 1000, também podia fazer-se terminar a Idade
Média na morte de Carlos Magno. Bastava chegar a acordo quanto aos nomes. Se,
porém, a Idade Média é a era que as subdivisões escolares querem, então fazem
parte da Idade Média filósofos como Nicolau Cusa, Marsílio Ficino e Pico della
Mirandola e, se quisermos ser rigorosos, Ariosto, Erasmo de Roterdão, Leonardo
e Lutero nascem na Idade Média.
A Idade Média não tinha só uma visão sombria da
vida.
É verdade que a Idade Média está cheia de tímpanos de igrejas
românicas repletos de diabos e suplícios infernais e que vê circular a imagem
do Triunfo da Morte; que é uma época de procissões penitenciais e, por vezes,
de uma nevrótica expectativa do fim, que os campos e os burgos são percorridos
por bandos de mendigos e de leprosos e que a literatura tem, por vezes, a
alucinação das viagens infernais. Mas, ao mesmo tempo, a Idade Média é a época
em que os goliardos celebram a alegria de viver e é, acima de tudo, a época da
luz.
Exactamente para desmentir a lenda dos tempos escuros, é conveniente
que se pense no gosto medieval da luz. Além de identificar a beleza com a
proporção, a Idade Média identificava-a com a luz e a cor, e esta cor era
sempre elementar: uma sinfonia de vermelho, azul, ouro, prata, branco e verde,
sem esbatidos nem claros-escuros, em que o esplendor é gerado pelo acordo geral
em vez de se fazer determinar por uma luz que envolve as coisas por fora ou de
fazer escorrer a cor para fora dos limites da figura. Nas miniaturas medievais,
a luz parece irradiar dos objectos». In Umberto Eco (organização), Idade
Média, Bárbaros, Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote, 2010-2011, ISBN: 978-972-204-479-0.
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