A cidade de Myrtilis
«(…) A cidade funcionava como uma
placa giratória das riquezas comerciais e minerais, que atravessavam o
território em carroças ou no dorso de animais e, já embarcadas, desciam até ao
mar e daí aos portos mediterrâneos. No sentido inverso chegavam mercadorias exóticas,
múltiplos artigos provenientes de outras paragens, bem como outras gentes, com
as suas linguagens, cultos e culturas. Este constante vaivém trouxe os
primeiros evangelizadores e a nova mensagem começou a florescer entre os
patrícios e plebeus da Myrtilis romana, numa época em
que o culto se oficializava e as várias comunidades religiosas podiam conviver
simultaneamente. As referências documentais da cidade e do seu sistema de
defesa são escassas e resumem-se à Crónica de Idácio que refere que Censorius
comes, qui Legatus missus fuerat ad Sueuos, rediens Martyli, obsessus a Rechila
in pace se tradidit. O texto permite deduzir a existência de uma
fortificação importante em Mértola, em 440 que, ao ser escolhida por Censorius como refúgio, demonstra a capacidade para
resistir, durante algum tempo, ao cerco de Requila. A presença sueva, referida
por esta fonte, deve ter sido efémera, não tendo ficado qualquer vestígio
arqueológico que o demonstre nem registo epigráfico que o ateste.
O complexo religioso
As
estruturas relacionadas com o complexo religioso ocupam uma área superior a
1500 m2. A plataforma, onde está implantado
o complexo religioso e o corredor porticado, é suportada por uma construção
subterrânea designada por criptopórtico-cisterna. A descoberta desta construção
foi feita no início do século XVI, por Duarte de Armas que anota no seu Livro das Fortalezas o seguinte: aqui
esta huã abobada atopida muyto boa. Os trabalhos de escavação levados a
cabo pelo Campo Arqueológico de Mértola (CAM), em finais dos anos setenta do
século XX, no interior desta estrutura, que foi minuciosamente desentulhada
durante cinco anos, revelaram uma galeria com um papel essencialmente
estrutural, de contenção e suporte da plataforma de implantação do forum.
Assim, no seu lado norte, para suportar maiores pressões numa amplitude mais
vasta, o desnível era compensado por um criptopórtico de 32 metros de comprimento,
com largura e alturas médias de, respetivamente, 2,70 e 5,80 metros. Equaciono,
contudo, que esta galeria teve, no início, várias funções: serviu como elemento
estruturante de apoio e sustentação do complexo religioso, integrou o sistema
defensivo da cidade e funcionou como local de armazenamento de mercadorias,
dadas as temperaturas amenas do interior da galeria durante os meses de Verão.
Nos últimos trinta anos, as
escavações da Acrópole puseram a descoberto um conjunto de construções do
complexo religioso. Este é constituído pela sala central, um compartimento
anexo, situado a norte, uma passagem em cotovelo e um espaço que ladeia a abside;
a sul e a norte é delimitado por um compartimento de planta basilical e uma
galeria porticada. Este complexo baptismal implantou-se na parte noroeste da plataforma
artificial onde se teria possivelmente localizado o forum
da cidade de Myrtilis.
Este grande
edifício, que ocupa uma área de 393 m2, de
planta rectangular, continha no seu interior um baptistério octogonal
implantado no centro de um tanque ou piscina rodeado por um deambulatório.
Partindo do espaço central abre-se a leste uma abside de planta em arco
ultrapassado onde marcas no solo indicam a possível localização de uma mesa de
altar. O pavimento da galeria porticada e o deambulatório estavam cobertos por
um belo tapete de mosaicos, do qual se conservam alguns fragmentos. A piscina
baptismal, com um ressalto em degrau que serviria de assento, é sustentada pelo
exterior por oito pequenos absidíolos. A água trazida da encosta do castelo
penetrava na piscina por uma canalização de chumbo e jorrava no alto de um
pequeno pináculo cravado no centro. Alguns lanços de degraus permitiam o acesso
ao tanque e à pia baptismal completamente revestidos com placas de mármore e
envolvidos por uma cancela». In Virgílio Lopes, O complexo religioso e os
baptistérios de Mértola na Antiguidade Tardia, Revista Medievalista, Número
23, Janeiro-Junho 2018, ISSN 1646-740X.
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