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A Idade Média não repudiou a ciência da Antiguidade
«(…)
Mas que a Terra era esférica, com excepção de alguns pré-socráticos, já os
gregos sabiam, desde o tempo de Pitágoras, que a considerava esférica por
motivos místico-matemáticos. Sabia-o naturalmente Ptolomeu, que dividira o
globo em 360 graus de meridiano, e tinham-no também compreendido Parménides,
Eudoxo, Platão, Aristóteles, Euclides, Arquimedes e, naturalmente, Eratóstenes,
que no século III da era antiga calculara com boa aproximação o comprimento do
meridiano terrestre. Tem, apesar disto, sido sustentado (e até por importantes
historiadores da ciência) que a Idade Média esquecera esta antiga noção; e esta
ideia vingou também nos meios comuns, de tal modo que, mesmo uma pessoa culta,
interrogada, dirá que Cristóvão Colombo, ao querer chegar ao Oriente navegando
para o Ocidente, queria provar aos doutores de Salamanca que a Terra era
redonda e que estes doutores não tinham razão quando afirmavam que a Terra era
plana e que as três caravelas não tardariam a precipitar-se no abismo cósmico.
Na
verdade, ninguém prestara muita atenção a Lactâncio, a começar por Santo Agostinho,
que por várias alusões dá a entender que achava que a Terra era esférica, embora
esta questão não lhe parecesse muito importante no plano espiritual. Apenas manifestava
sérias dúvidas sobre a possibilidade de haver seres humanos nas tais regiões
antípodas. Mas, ao discutir sobre o que havia nessas regiões, raciocinava sobre
um modelo de Terra esférica. Quanto a Cosmas, o seu livro estava escrito em
grego, língua que a Idade Média cristã esquecera, e só em 1706 foi traduzido
para latim. Nenhum autor medieval o conhecia.
No
século VII, Isidoro Sevilha (que não era um modelo de rigor científico) avaliava
em 80 mil estádios o comprimento do equador. Quem fala de círculo equatorial
admite, evidentemente, que a Terra é esférica. Até um estudante do liceu pode
facilmente deduzir que, se Dante entra no funil infernal e, quando sai pelo
outro lado, vê estrelas desconhecidas no sopé da montanha do Purgatório, isso
significa que ele sabia perfeitamente que a Terra era esférica e escrevia para
leitores que também o sabiam. Mas dessa opinião tinham sido Orígenes e Ambrósio,
Beda, Alberto Magno e Tomás Aquino, Roger Bacon e João Sacro Bosco. Só para
mencionar alguns.
O
assunto em litígio nos tempos de Colombo era que os doutores de Salamanca tinham
feito cálculos mais exactos do que os dele e diziam que a Terra, embora redondíssima,
era maior do que o que o genovês supunha e que seria, portanto, insensato
tentar circum-navegá-la. Nem Colombo nem os doutores de Salamanca suspeitavam,
naturalmente, que houvesse outro continente entre a Europa e a Ásia. Todavia,
nos próprios manuscritos de Isidoro via-se o chamado mapa em T, em que a parte
superior representa a Ásia, porque segundo a lenda era na Ásia que se encontrava
o paraíso terrestre; a barra horizontal representa de um lado o mar Negro e do outro,
o Nilo, e a vertical, o Mediterrâneo; o quarto de círculo da esquerda representa
a Europa e o da direita a África. A toda a volta, o grande círculo do oceano.
Os
mapas
em T são, naturalmente, bidimensionais, mas ninguém diz que uma representação
bidimensional da Terra implica que a consideremos plana; de outro modo, segundo
os actuais atlas, também a Terra seria plana. Aquela forma de projecção cartográfica
era puramente convencional e achava-se inútil representar a outra face do globo,
desconhecida de todos e provavelmente não habitável, tal como hoje não representamos
a outra face da Lua, da qual nada sabemos. Finalmente, a Idade Média foi um
tempo de grandes viagens, mas, com as estradas em decadência, as florestas para
atravessar e os braços de mar para transpor confiando nos construtores navais
da época, não era possível desenhar mapas adequados. Os mapas eram puramente
indicativos. Por vezes, veja-se o fac-símile do mapa de Ebstorf (1234), a
preocupação dos seus autores não era explicar como se chegava a Jerusalém, mas
representar Jerusalém no centro da Terra. Tentemos pensar nos mapas das linhas
ferroviárias vendidos nos quiosques. Daquela rede de linhas, com os seus nós,
claríssima para quem quiser apanhar um comboio de Milão para Livorno (e ficar a
saber que terá de passar por Génova), ninguém poderia deduzir com exactidão a
forma do país. A forma exacta de Itália não é o que interessa a quem vai
apanhar o comboio». In Umberto Eco (organização), Idade Média, Bárbaros,
Cristãos, Muçulmanos, Publicações
dom Quixote, 2010-2011, ISBN: 978-972-204-479-0.
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