segunda-feira, 26 de março de 2018

Estudos sobre a Ordem de Avis. Séculos XII-XV. Maria Cristina Cunha. «Normalmente, a filiação da Ordem portuguesa na castelhana tem sido identificada num único sentido: a confirmação dos mestres eleitos no capítulo de Avis»

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A dependência de Avis
«(…) Apesar de permanecerem obscuros alguns pormenores relacionados com a visita de 1346 e, sobretudo, de desconhecermos o desfecho destas situações conflituosas (certamente João Rodrigues Pimentel terá ganho porque continuou à frente da Ordem, não havendo mais sinais de contestação durante o seu mestrado), o certo é que os dados recolhidos, associados a outros anteriormente conhecidos, são deveras importantes para um melhor conhecimento do tema que, basicamente, hoje nos interessa: a dependência de Avis relativamente a Calatrava, tanto do ponto de vista religioso, como na perspectiva política.
Começámos por afirmar que Avis se regia pela Regra dada por Cister a Calatrava e que esta Ordem devia verificar o cumprimento do estipulado. Houve, pois, uma dependência religiosa desde o início e prova disso é o facto de as visitas a que acima fizemos referência terem sido executadas por um cavaleiro acompanhado de um monge cisterciense. Porém, em nenhuma das ocasiões se esclarece os motivos da escolha de um determinado abade. Em 1346, por exemplo, porque é que é o abade de Almaziva, da Diocese de Coimbra, que acompanha Pero Esteves? Até onde ia a intervenção dos monges cistercienses? As três actas que chegaram até nós não permitem vislumbrar um papel muito activo dos religiosos (para além da excomunhão lançada sobre João Rodrigues Gouveia). Tão-pouco os restantes documentos conservados até hoje se referem a qualquer intervenção de um monge cisterciense estranho a Avis na vida da milícia.
Normalmente, a filiação da Ordem portuguesa na castelhana tem sido identificada num único sentido: a confirmação dos mestres eleitos no capítulo de Avis pelo mestre de Calatrava ou por um seu representante. Mas os documentos de 1346 mostram-nos também o sentido inverso: cavaleiros portugueses estão presentes no capítulo de Calatrava, primeiro a pedir uma visita e depois a protestar dos agravos que haviam recebido aquando dessa mesma visita. Ou seja, a dependência não era só vista do lado castelhano, mas também o era do lado de Avis, porque alguns membros desta solicitaram directamente ao mestre de Calatrava resolução de problemas internos da casa portuguesa. Seja como for, a dependência de Avis não pode ser posta em causa. Quando, no século XIV, se dá o Grande Cisma da Igreja, Avis alcança a independência religiosa. Se a vontade de a alcançar já existiria, o motivo, bem simples, foi então dado: Calatrava tinha aderido ao partido cismático. Daí que os freires portugueses não tivessem aceite a visita que seria para confirmar Fernão Rodrigues Sequeira, em 1387. A situação política nacional terá também influído no desenrolar dos acontecimentos, mas o grave problema do Cisma deu ao pontífice o motivo necessário para eximir Avis das visitas de Calatrava. A liberdade conquistada parecia, contudo, provisória: em 1436, no Concílio de Basileia, volta-se a entregar o direito de visita à ordem castelhana, que não mais deixa de tentar exercê-lo, embora sem sucesso. O desmembramento das duas Ordens era doravante um facto.
No tocante ao aspecto político, gostaríamos de salientar a intervenção régia no processo de 1346. Desde o início que a monarquia terá procurado afirmar a separação nítida das duas Ordens. De outro modo, não faria sentido que Afonso Henriques autorizasse a presença em Portugal de uma milícia que poderia constituir uma ameaça contra ele (a não ser que as doações régias tenham o significado que Lomax atribuiu às doações feitas pelo rei de Leão à Ordem de Calatrava, que visavam comprar a sua neutralidade). Portanto, quando Afonso Henriques faz doações ou se refere aos freires de Évora, não significa que não considerasse a Ordem filiada, mas sim que ele a sabia politicamente autónoma relativamente aos castelhanos. Daí também que os reis que lhe sucederam, nomeadamente Dinis I, tenham procurado marcar bem a dependência da Ordem à monarquia portuguesa. A eleição do mestre Garcia Peres Casal, imposta pelo monarca em 1314, é bem prova disso. Que se saiba, não houve então visita, nem seria considerada necessária porque o monarca resolvera o problema da sua ordem. De facto, ao longo da Idade Média, o rei serviu de juiz nas contendas da Ordem com os povoadores e com os concelhos do reino, mas também serviu de recurso a alguns cavaleiros que, por este motivo ou aquele, para ele apelaram em busca de resolução de conflitos internos da Ordem. O documento que nos fala da eleição de 1314 diz-nos isso claramente: é o rei que acalma a grande discórdia que havia entre os freires. O mesmo se terá passado em 1346 com Afonso IV, embora não saibamos até onde terá chegado a intervenção régia.
O comendador calatravenho, Pero Esteves, em visita a Avis, não só aceita a intervenção do rei no litígio que opunha o comendador Fernão Rodrigues ao mestre João Rodrigues Pimentel, aconselhando aquele a dirigir-se ao monarca para reaver os seus direitos na Comenda, como lembra, em plena reunião capitular, que Avis devia fidelidade ao rei português. Mas, conforme então proclamou João Rodrigues Pimentel, não era preciso relembrar tal, pois que, como mestre, o ,seu coraçom [devia] seer obediente e mandado. a seu senhor el rey (..) como o el, dom Per'Estevez muy bem sabia». In Maria Cristina A. Cunha, Estudos sobre a Ordem de Avis, séculos XII-XV, Faculdade de Letras, Biblioteca Digital, Porto, 2009.

Cortesia da Faculdade de Letras do Porto/JDACT