sexta-feira, 23 de março de 2018

A Bolsa e a Vida. Jacques Le Goff. «Confrontada com os heréticos, é o apogeu dos Cátaros, com a evolução de um mundo que, cada vez mais, oferece aos cristãos gozos terrestres, a Igreja escolhe falar»

Cortesia de wikipedia e jdact

Entre o dinheiro e o Inferno: a usura e o usuário
«(…) Trata-se aqui apenas de um esquema; a partir desse esboço, o pregador acrescenta pormenores. Representa com a voz e suas entonações, gesticula, a matéria já é impressionante. Deve ter sido levada a milhões de ouvintes. Pois o sermão, na Idade Média, é a grande media que atinge, em princípio, todos os fiéis. Na verdade, sabemos, graças especialmente a um exemplum concernente a São Luís, que às vezes homens deixam a igreja durante um sermão, em troca da sua grande concorrente, a taberna, que oferece uma tentação permanente. Quando isso aconteceu em sua presença, São Luís, escandalizado, tornou a trazer à boa palavra os paroquianos extraviados. Além disso, o século XIII vê um grande renascimento da pregação.
Confrontada com os heréticos, é o apogeu dos Cátaros, com a evolução de um mundo que, cada vez mais, oferece aos cristãos gozos terrestres, a Igreja escolhe falar. A uma sociedade em plena mutação, ela dirige uma palavra muitas vezes inédita e trata da vida quotidiana. Novas ordens acabam de nascer, que opõem à riqueza crescente o valor espiritual da pobreza: Ordens Mendicantes, cujas duas mais importantes, a dos Franciscanos e a dos Dominicanos, estas últimas formam a Ordem dos Pregadores, se especializam na pregação. Após ter pregado a Cruzada, prega-se a Reforma. Com vedetes que atraem as multidões. Embora secular, Jacques Vitry foi uma delas: pregador ainda da Cruzada, mas sobretudo pregador da nova sociedade. Seus modelos de sermão, com seus esquemas de exempla, foram largamente reproduzidos e difundidos além mesmo do século XIII. E aquela história, que talvez tenha sido uma anedota de sucesso, evoca o momento mais angustiante da vida do cristão, a agonia. Ela põe em cena a dualidade do homem: sua alma e seu corpo, o grande antagonismo social do rico e do pobre, esses novos protagonistas da existência humana que são o ouro e a prata, e termina na pior conclusão de uma vida: o apelo do insensato aos demónios, a evocação dos diabos que torturam e o enterro dos condenados aqui em baixo e no Além. Recusado à terra cristã, o cadáver do usurário impenitente é sepultado sem demora e para sempre no Inferno. A bom entendedor, a salvação! Usurários! Eis o vosso destino.
Tal é a fonte essencial onde iremos procurar o usurário da Idade Média, nas anedotas que foram contadas, ouvidas e que circularam. A usura é um pecado. Por quê? Que maldição atinge essa bolsa que o usurário enche, adora, e da qual não se quer separar mais do que Harpagão (o avaro) de seu tesouro e que o conduz à morte eterna? Para salvar-se será preciso separar-se da bolsa, ou encontrará, encontrarão para ele, o meio de guardar a bolsa e a vida eterna? Eis o grande combate do usurário entre a riqueza e o Paraíso, o dinheiro e o Inferno.

A bolsa: a usura
Falamos de usura e, algumas vezes, os textos e os homens da Idade Média também utilizam essa palavra no singular, usura. Mas a usura tem muitas faces. Quase sempre, os documentos do século XIII empregam o termo no plural: usurae. A usura é um monstro de várias cabeças, uma hidra. Jacques Vitry, em seu sermão modelo 59, consagra o terceiro parágrafo à evocação desta usura de múltiplas formas: De multiplici usura. E Thomas Chobham, em sua Summa, após ter definido a usura em geral, descreve seus os diferentes casos: De variis casibus para voltar no final aos outros casos de usura». In Jacques Le Goff, A Bolsa e a Vida, 1986/1989/2004, Editorial Teorema, 2006, ISBN 978-972-695-683-9.

Cortesia de ETeorema/JDACT