sexta-feira, 1 de março de 2013

Outras Maneiras de Ver. Temas Portugueses. José Hermano Saraiva. «… o autor diz que ela estava em vigor desde o tempo de Afonso Henriques até ao momento em que a obra estava a ser escrita, ao momento em que “nós o Infante fizemos esta crónica”. ‘Quem era o Infante?’ Provavelmente “Duarte”»

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A Revolução de Fernão Lopes
«No manuscrito do Porto indica-se a data em que a redacção foi iniciada a 1 de Julho de 1419, passado portanto cerca de um ano sobre a data em que Fernão Lopes foi nomeado guarda das escrituras do arquivo, entre essas escrituras estavam muitos dos elementos que serviram de fontes às crónicas. E em ambos os manuscritos se pode ler uma informação curiosa: ao referir-se à regra dos frades de Alcobaça, o autor diz que ela estava em vigor desde o tempo de Afonso Henriques até ao momento em que a obra estava a ser escrita, ao momento em que nós o Infante fizemos esta crónica.
E portanto um Infante que figura como autor, não obviamente no sentido que a expressão hoje assume, mas no de pessoa por cujo mandado a crónica era elaborada.
Quem era o Infante? Provavelmente Duarte, que nessa altura já partilhava os encargos do governo com o monarca. Mas não deixa de impressionar que Duarte, memoralista minucioso que no Leal Conselheiro nos dá conta dos seus trabalhos e das suas predilecções intelectuais, não faça a menor referência à Crónica que teria mandado fazer.
Nem o Leal Conselheiro, nem a Ensinança de Bem Cavalgar, nem os textos reunidos no chamado Livro dos Conselhos, nem a correspondência conhecida indicam que o rei Duarte tivesse tido algum interesse pela história. Escreveu, como se sabe, as minutas para os sermões de exéquias de Nun'Álvares Pereira e de João I, e em ambos esses textos se desinteressa do aspecto histórico, para acentuar apenas as virtudes morais. Quanto aos feitos do Condestável, resume-os na frase de que foi muitas vezes vencedor e nunca vencido; em relação a João I, proíbe mesmo que se fale, clara ou veladamente, nem por claro nem por figura, na guerra da independência, para não magoar os castelhanos que possam estar presentes, e à rainha, que era aragonesa!
Por outro lado acontece que, embora o monarca Duarte tivesse sido escritor de verdadeiro mérito, não era ele, mas a seu irmão infante Pedro que os seus contemporâneos atribuíam a qualidade de homem de letras. Um dos fundamentos de que foi Duarte I quem mandou escrever a Crónica de 1419 está na informação dada por Zurara de que Duarte, em sendo infante, incumbiu Fernão Lopes de apanhar os avisamentos que pertenciam a todos aqueles feitos e os juntar e ordenar segundo pertencia à grandeza deles.
Essa ordem teria de se referir à tarefa de 1419,visto que o alvará de 1434 foi já assinado por Duarte em sendo rei. Mas os feitos a que a frase se refere são os do interregno e da primeira parte do reinado de João I. Isto é, são precisamente aqueles que  são especificados no alvará de 1434. E existe outro motivo para levar a pensar que em 1419
Fernão Lopes não recebeu a ordem de redigir a cronica do reinado de D. João I: a queixa que o próprio cronista faz de não ter podido escrever os feitos de Nun’Álvares enquanto ele foi vivo:
  • certamente a nós fora singular prazer se em sua história pudéramos seguir a ordenança dos que ditam as cousas em vida daqueles a que acontecem (...); mas ora, depois de seu passamento, mortos os mais dos que lhe foram companheiros, já de seus bons feitos mais gastar não podemos se não as escassas relíquias deles.
Ora o Condestável morreu em 1422, e a queixa mal se compreenderia se em 1419 Fernão Lopes tivesse sido incumbido de escrever a crónica do período da guerra, visto que este incluía necessariamente o relato dos feitos de Nun’Álvares». In José Hermano Saraiva, Outras Maneiras de Ver, Temas Portugueses, Círculo de Leitores, 1981.

Cortesia de C. Leitores/JDACT