quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

A morte de D Ignez de Castro. 3º Canto. Camões. «Queria perdoar-lhe o Rei benino, movido das palavras que o magôam; mas o pertinaz povo, e seu destino, que desta sorte o quiz, lhe naõ perdôam. Arrancam das espadas de aço fino, os que por bom tal feito alli pregôam. … Ferozes vos mostrais, e Cavalleiros?»

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«As filhas do Mondego a morte escura, longo tempo, chorando, memória». Luís de Camões

De acordo com o original

Episódio do Grande Luiz de Camões. À Morte de D. Ignez de Castro
[...]
CXXVII
Ó tu, que t[ë]es de humano o gesto, e o peito,
(Se de humano he matar h[ü]a donzella
Fraca, e sem força, só por ter sujeito
O coraçaõ a quem soube vencella)
A estas criancinhas tem respeito,
Pois o naõ t[ë]es á morte escura della:
Mova-te a piedade sua, e minha,
Pois te naõ move a culpa que naõ tinha.

CXXVIII
E se vencendo a Maura resistencia
A morte sabes dar com fogo, e ferro;
Sabe tambem dar vida com clemencia
A quem para perdê-la naõ fez erro.
Mas se to assi merece esta innocencia,
Põe-me em perpétuo e misero desterro,
Na Scythia fria, ou lá na Libya ardente,
Onde em lagrimas viva eternamente.

CXXIX
Põe-me onde se use toda a feridade;
Entre leões, e tigres; e verei
Se nelles achar posso a piedade
Que entre peitos humaos naõ achei.
Alli co'o amor intrinseco, e vontade,
Naquelle por quem mouro, criarei
Estas reliquias suas que aqui viste,
Que refrigerio sejam da mãi triste.

CXXX
Queria perdoar-lhe o Rei benino,
Movido das palavras que o magôam;
Mas o pertinaz povo, e seu destino,
Que desta sorte o quiz, lhe naõ perdôam.
Arrancam das espadas de aço fino,
Os que por bom tal feito alli pregôam.
Contra h[~u]a dama, ó peitos carniceiros,
Ferozes vos mostrais, e Cavalleiros?

CXXXI
Qual contra a linda moça Policena,
Consolaçaõ extrema da mãi velha,
Porque á sombra de Achilles a condena,
Co'o ferro o duro Pyrrho se aparelha:
Mas ella os olhos, com que o ar serena,
(Bem como paciente e mansa ovelha)
Na misera mãi postos, que endoudece,
Ao duro sacrificio se offerece:

CXXXII
Taes contra Ignez os brutos matadores,
No colo de alabastro, que sostinha
As obras com que amor matou de amores
Áquelle que despois a fez Rainha,
As espadas banhando, e as brancas flores,
Que ella dos olhos seus regadas tinha,
Se encarniçavam férvidos, e irosos,
No futuro castigo naõ cuidosos.

CXXXIII
Bem puderas, ó Sol, da vista destes,
Teus raios apartar aquelle dia,
Como da seva mesa de Thyestes,
Quando os filhos por maõ de Atreo comia.
Vós, ó concavos valles, que pudestes
A voz extrema ouvir da boca fria,
O nome do seu Pedro que lhe ouvistes,
Por muito grande espaço repetistes.

CXXXIIII
Assi como a bonina, que cortada
Antes do tempo foi, candida, e bella,
Sendo das mãos lascivas maltratada,
Da menina que a trouxe na capella,
O cheiro traz perdido, e a côr murchada;
Tal está morta a pallida donzella,
Seccas do rosto as rosas, e perdida
A branca e viva côr, co'a doce vida.

CXXXV
As filhas do Mondego a morte escura
Longo tempo chorando memoráram;
E, por memoria eterna, em fonte pura
As lagrimas choradas transformáram:
O nome lhe pozeram, que ainda dura,
Dos amores de Ignez, que alli passáram.
Vede que fresca fonte rega as flores,
Que lagrimas saõ agua, e o nome amores.

CXXXVI
Naõ correo muito tempo que a vingança
Naõ visse Pedro das mortaes feridas;
Que em tomando de Reino a governança,
A tomou dos fugidos homicidas:
De outro Pedro cruissimo os alcança;
Que ambos imigos das humanas vidas,
O concerto fizeram duro, e injusto,
Que com Lepido, e Antonio fez Augusto.
Luiz de Camões, in ‘À Morte de D. Ignez de Castro’

In Luiz de Camões, Manuel Maria Barbosa du Bocage, A morte de D Ignez de Castro, 3º Canto, The Project Gutenberg, Produção de Tiago Tejo, Cantata, A Morte de D. Ignez, 2007, Lisboa, Typographia Rollandiana, 1824.

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