segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Dona Dulce de Barcelona e Aragão [(1153-1159)-1198]. Nuno Pizarro Dias. « A instabilidade manifesta-se também nos condados pirenaicos. Em Pamplona persiste uma forte resistência face às repetidas tentativas de estabelecer um condado vinculado à monarquia franca»

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Todos os Nomes. A génese da grande fronteira
«(…) Os Francos teriam ainda chegado a conquistar Tarraco e Tortosa, mas, por força do referido acordo ou reconhecendo a impossibilidade de se manterem em tão agressiva posição de domínio da foz do Ebro, não tardaram a recuar destas cidades, para concentrar recursos, e reforçar a defesa de Barcelona, na linha do rio Llobregat. Durante mais de três séculos, uma longa faixa territorial, contornando o caudal deste rio e todo o extremo pirenaico do grande planalto, seria a estável fronteira entre essas duas tão diferentes civilizações. Fronteira esta que é um desses factos verdadeiramente marcantes das dinâmicas de longa duração e da evoluço lenta das estruturas. Nos territoria que agora se organizam como Marca hispânica do Império Carolíngio, com população relativamente escassa e muito dispersa, acentuam-se as tendências de um processo de ruralização da sociedade. Uma vida urbana reduzida ao mínimo e onde, praticamente, desapareceu a circulação monetária. Pequenas comunidades de pastores e camponeses, fechadas nos estreitos vales, em virtude das comunicações particularmente difíceis, praticam uma rudimentar economia agrícola muito pouco orientada para a troca.
Pelo contrário, nesses outros territórios da Marca superior do Al-Andaluz, nem as turbulentas particularidades de uma sociedade de fronteira conseguem esbater o grande contraste, resultante de uma integração nesse imenso mundo muçulmano em franca expansão económica e com intensa circulação de boas moedas de ouro (dinar) e de prata (dirhem). A islamização, à semelhança da romanização, renova a vida urbana e reativa uma grande rede de trocas. Há um significativo número de cidades bastante populosas. As capitais tornam-se mesmo grandes metrópoles. Mercados para onde é possível escoar excedentes, o que incentiva actividades agrícolas mais produtivas. De lembrar, ainda, essa evidência, não menos fundamental por se ter tornado um lugar-comum, de que a fronteira tanto separa como une. Uma ligação que podemos facilmente ilustrar, por exemplo, com um dos primeiros governadores cristãos documentados em Pamplona, Inigo Arista († 851), que sabemos ser irmão uterino de Muza ibn Muza († 862), dos Banu Qasi, proeminente família muwallad, isto é, descendente de antigos hispanos convertidos ao islão. Os Banu Qasi eram descendentes do conde Casio, que, logo após a sua precoce conversão, se tornaram clientes dos emires omíadas, acumulando crescente riqueza e poder no desempenho dos mais altos cargos da administração regional muçulmana, nomeadamente em Borja e Tudela. Mais adiante, encontraremos várias figuras desta família, ao longo de gerações e com acção disseminada um pouco por todo o vale do Ebro; e sabe-se também que este Muza II, filho de Muza ibn Qasi, viria a casar com uma sobrinha, Ossona, filha desse seu meio-irmão Inigo Arista.
O esplendor civilizacional do Sul islamizado seduz e projecta influências sobre o Norte cristão. Lembramos aquele pitoresco caso do conde de Castela, Sancho Garcia (995-1017), que por vezes se vestia ao uso oriental e tinha na sua corre cantoras e dançarinas oferecidas pelo califa de Córdova. E outros exemplos há, tão surpreendentes, como o de um rei cristão da viragem do século XI para o século XII, Pedro I de Aragão e Navarra, que valida habitualmente os documentos com a subscrição do seu nome em escrita árabe; ou tão polémicos, como o da admitida influência da poesia popular andaluza dos séculos X e XI, do zayal ou zéjel com o seu acompanhamento musical, nas poesias e cantares das cortes aquitano-provençais, catalãs, castelhanas e galaico-portuguesas. O renascimento urbano do século XI passará também por uma forçosa integração no sistema monetário do grande comércio internacional. As primeiras cunhagens de moeda áurea cristã reproduzem os dinares muçulmanos.

Pequenas luzes na escuridão das montanhas
É basicamente errada a ideia de uma rápida ocupação militar desses territórios de recente conquista e daqueles vales dos Pirenéus, desde então mais claramente subtraídos ao domínio islâmico. Por imperativos geográficos, uma vez que era virtualmente impossível estabelecer comunicações entre todos esses vales (separados por cumes muito elevados e por inúmeras correntes, frequentemente violentas, dos rios e ribeiros de alta montanha), bem como, possivelmente, por certo sentido político, que aconselharia a não instituir um único poder, as novas extensões da fronteira carolíngia, logo no início do século IX, surgem-nos divididas em vários condados. Não obstante, o Império terá permanentes dificuldades para controlar esse verdadeiro mosaico de poderes e, ao fim de poucas décadas, todos os condados eram de facto independentes. Os redactores das mais antigas fontes narrativas dedicaram uma especial atenção ao registo dos nomes, e respectivas filiações, desses primeiros condes. Dados preciosos, de lacónica informação, que laboriosas investigações, da mais apurada erudição historiográfica, transformaram numa reconstituição desse quadro, de muito densa leitura, actualmente ao nosso dispor.
No imediato da conquista parece optar-se por uma solução integradora. Reconhecem-se chefes e aristocracias tribais, nas mais arcaicas regiões montanhosas, e figuras da nobreza regional hispânica ou visigoda, nos territórios litorais mais romanizados. Cedo se receia, porém, tudo quanto decorre de uma algo frágil articulação política, com governos que facilmente podiam autonomizar-se do Império. As complexas relações de uma relativa coexistência pacífica com os muçulmanos suscitam naturais desconfianças na corte carolíngia, aonde, logo em 820, será chamado o conde Bera, primeiro governador dos condados de Barcelona e Gerona, obrigado a responder às mais graves acusações de deslealdade e traição. Para esses condados da primeira linha da Marca são então destacados alguns condes francos, ligados ao rei por laços da mais estreita fidelidade, o que, no entanto, não evitará novas formas de conflito, uma vez que os mesmos laços os envolvem directamente nas dissensões que começam a manifestar-se no seio da própria família régia. No saldo da primeira revolta dos herdeiros de Luís, o Piedoso (814-840), o conde Bernardo da Septimânia, que desde 826 governava Barcelona, foi aqui substituído pelo conde Berenguer de Toulouse, facto que, por sua vez, dará origem a uma imediata fractura de toda a aristocracia regional em dois grandes partidos rivais.
A instabilidade manifesta-se também nos condados pirenaicos. Em Pamplona persiste uma forte resistência face às repetidas tentativas de estabelecer um condado vinculado à monarquia franca. Segundo Garcia Cortázar, as fontes árabes distinguem perfeitamente os baskunis, que habitavam o território de Pamplona, chefiados agora pela família dos Arista, que, como vimos, estabelecem estreitas relações com os Banu Qasi, representantes regionais do emir, e os glaskiyun (ou gascões) dos vizinhos territórios de Leire e dos vales mais ocidentais de Aragão, chefiados pela família dos Velasco, um pouco mais romanizada, talvez, e mais próxima da influência carolíngia. A violenta rebelião de 799, que chacina a guarnição muçulmana do reduto de Pamplona e mata o próprio governador Mutarrif ibn Muza, seria assim um necessário golpe de força para fazer recair o poder na família dos Velasco, apoiada no poderio franco». In Nuno Pizarro Dias, Dona Dulce de Barcelona ([1153-1159]-1198), As Primeiras Rainhas, Círculo de Leitores, 2012, ISBN 978-972-42-4703-8.

Cortesia de CLeitores/JDACT