segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Jean Cocteau. La Machine Infernale. Maria do Céu Fialho. « a conjugar com a música, a riqueza coreográfica, guarda-roupa e cenários. E Cocteau persuade Picasso ao trabalho conjunto, em colaboração com Diaghilev, para pôr em cena o teatro-bailado ‘Parade’…»

Jean Cocteau. Cortesia de wikipedia

As vozes da tradição
«Exuberante é a paisagem dos muitos –ismos, alguns deles animados por uma violenta sede de auto-afirmação, como a compensar a pressentida brevidade do seu destino, que povoaram as artes e letras da Europa de fin de siècle e, sobretudo, as primeiras décadas do nosso século (XX). Sinal de uma multiplicidade de influências recentes, da busca de novos códigos expressivos, da necessidade de construção de uma nova realidade poética ou, pura e simplesmente, consequência directa da rejeição radical, quase neurótica, de qualquer código, trocado pela lei da infracção absoluta, eles constituem o mais vivo sintoma de uma Europa mergulhada em profundos conflitos e marcada por profundas alterações, de vária ordem. Se nomes há que ficaram taxativamente vinculados a um movimento estético e nele se esgotaram, em sincronia com a meteórica existência deste, será o caso de um Tristan Tzara e da vida breve do Dadaísmo, outras figuras atestam um itinerário diverso. Associadas primeiramente às manifestações de grupo de rejeição caótica e exibicionista dos cânones artísticos aceites, rejeição essa assumida em atitude provocatória dos gostos do público ou mesmo da opinião pública em geral acabam por enveredar por um vanguardismo estético cuja inflexibilidade e rigorismo de critérios dá azo a ferozes polémicas e a uma verdadeira tirania de escolas. É certamente o caso, entre  outros, de André Breton e do movimento surrealista. Mas a rebeldia criadora dos maiores situa-os para além de todo o objectivo polémico que obras suas possam ter lido, ou mesmo para além de movimentos a cuja génese possam, porventura, ter estado ligados e de que sejam os mais insignes representantes.
Recordamos o exemplo mais expressivo da arte pictórica do nosso século (XX): Pablo Picasso. O cubismo alcançou nas suas telas os momentos de melhor expressão estética na reinvenção plástica da realidade e exploração das suas formas. E, no entanto, Picasso transgride continuamente os horizontes que abre e que tendem a encontrar seguidores, a impor-se como escola. O seu jogo criador consiste em, uma vez questionado e desmontado o princípio quase absoluto da arte imitadora de realidades, ou da pintura impressionista de aparência de superfícies, iniciar uma aventura estética, nascida da vitalidade inesgotável do seu espírito irrequieto, da sede insaciável de representar, reinterpretar, reinventar para a qual é lícita a utilização variada e, por vezes, simultânea de recursos plásticos e linguagens pictóricas diversas. O artista move-se, assim, num espaço de criação que vai da decomposição geométrica de grupo em Les Demoiselles d’ Avignon à deformação longilínea e angustiada das Duas irmãs, da fase azul, da composição triangular, ora gritante de cor, ora eivada de melancolia, dos seus arlequins, ao manifesto de revolta de Guernica, propositada e cuidadosamente caótica, de formas sobrepostas, desintegradas, monstruosamente deformadas, ou à cena intimista de harmonia tácita entre o Par de Namorados, onde a postura, o vestuário das duas figuras, a clareza do traço lembra um quadro do Renascimento italiano. A mesma delicadeza e finura de traço é apreciável nas ilustrações feitas para uma edição das Metamorfoses de Ovídio ou para a da Lisistrata de Aristófanes.
Esta dupla atracção pela aventura estética inovadora e pela perenidade do clássico foram, certamente, determinantes, do itinerário do artista e não são alheias à sua aversão ao enfeudamento a tiranias de escola. E esta sua atitude deve-o ter aproximado de outros artistas igualmente avessos ao rigorismo de grupos, igualmente motivados por essa aventura de poiesis, ao mesmo tempo que fascinados pela universalidade do clássico. Um deles é Jean Cocteau. A concepção dramática desenvolvida por Jean Cocteau, sobretudo sob a influência do fascínio que sobre ele exerceram os Baileis Russes, aponta para um teatro como espectáculo total, onde o código verbal é apenas uma componente, prescindível até, a conjugar com a música, a riqueza coreográfica, guarda-roupa e cenários. E Cocteau persuade Picasso ao trabalho conjunto, em colaboração com Diaghilev, para pôr em cena o teatro-bailado Parade, com música de Satie. A preparação dos cenários leva o dramaturgo e o pintor à Itália, para se encontrarem com o director dos Balíeis Russes. Juntos visitarão as ruinas de Pompeios. Juntos irão trabalhar na encenação de Antigone d’après Sophocle, versão condensada do texto sofocliano da autoria de Cocteau, com música de Honegger. O cenário, naturalmente, é de Picasso, colunas representadas sobre a ondulação do pano de fundo e, entre elas, a sugestão de cabeças humanas a marcar a presença do Coro». In Maria do Céu Fialho, Jean Cocteau, La Machine Infernale, As vozes da tradição, Revista Humanitas, volume XLV, 1993, Universidade de Coimbra.

Cortesia da UCoimbra/JDACT