sábado, 13 de dezembro de 2014

A Paixão da Memória. O Canto da Salamandra. D. Leonor Teles. Seomara Ferreira. «A mãe do jovem não foi também relegada para as sombras do esquecimento. Recebeu vários bens e casas em Avis. Isto tudo antes do ano (1407) em que o Transtamara, com o auxílio dos franceses, captura o irmão e apunhala-o…»

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Cur Non Utrumque
(…) Todos os povos necessitam dos seus heróis, dos seus mitos. Nuno Álvares pertence a essa estirpe de escolhidos. Nada podemos contra isso e nada tenho contra ele que, além de bom militar e atento aprendiz de estratégias, continua com alma de menino. Fez a sua escolha apenas e traiu-me como todos os outros. Criei-o na corte, fi-lo cavaleiro e, antes, meu escudeiro. A discreta Iria, a sua mãe, que esteve com minha filha como cuvilheira, sempre me respeitou. Hoje, não sei o que sentirá por mim, mas as almas fortes e honestas não mudam. Quanto muito, calam-se. Esse silêncio é mais elucidativo, muitas vezes, que um longo discurso. Na realidade já me fez alguns favores, como providenciar para que chegassem às minhas mãos cartas com palavras amigas, daqueles que, em silêncio, em segredo, continuam a meu lado. O tempo também se encarregará de os aniquilar ou conquistar para a causa do novo Rei de Portugal. Que assim seja. A vida é assim. Vamo-nos cruzando ao longo dela com as linhas invisíveis de outros destinos que Deus considerou tocarem as do nosso. Se Pedro de Portugal declarava em Cantanhede, solenemente, que casara com D. Inês de Castro, e por isso os filhos dela se intitulavam Infantes, o lugar do herdeiro estava seguro. O Rei afirmava que o casamento se efectuara em Bragança em 1391, portanto sete anos antes. Ele conseguira matar todos os assassinos menos um, Diogo Lopes Pacheco, um dos maiores celerados que conheci, permanente agente espião ao serviço de Castela em Portugal. O seu destino irá cruzar-se com o meu de uma forma brutal e decisiva, como vereis. Seguiu-se a trasladação do que restava do corpo semimumificado da infeliz para o seu esplêndido túmulo de Alcobaça. Foi uma jornada, ou melhor, várias, de horror. Fernando contou-me um dia que temia o pai quando o via com os olhos raiados de sangue, a boca a espumar, enraivecido, se se recordava de Inês e dos seus assassinos. É natural. Hoje, não sei se Pedro teve mesmo o sentimento desse desgosto tão profundo durante toda a vida, se ele se foi esbatendo ao longo dos anos e a sua alma dilacerada e surpresa acabou por recriá-lo nesses instantes terríveis, porque tudo se esgota, até a dor, e ele sentiria remorsos por já nada experimentar da agonia inicial. É como se todos os actos praticados fossem simultaneamente um lenitivo e um alimento para essa mesma dor.
Nos anos que se seguiram, seis, se me não engano, o reino continuava vivendo entre as loucuras do Rei e as notícias de Castela. Aqui sabe-se que o condestável de França, Du Guesclin, passa a apoiar o partido de Henrique de Transtamara em luta fratricida contra seu irmão, o rei Pedro I de Castela. Pedro é aliado do rei de Inglaterra. E foram anos de peste também. O rei de Portugal protegia seus filhos, os que tivera de Inês de Castro, com amplas doações e património. Os filhos e o cunhado, Álvaro Perez Castro. Na Inglaterra, morria o duque de Lencastre e John Gaunt herdava-lhe o título e os bens. Outra pedra no tabuleiro de xadrez da política. João, filho da galega Teresa Lourenço, foi investido no Mestrado da Ordem de Avis porque também não era esquecido pelo pai. Como morrera Martim Avelar, o titular da Ordem, o rei acedeu à proposta de Nuno Freire Andrade para nomear o garoto. Uma lenda que os apoiantes do jovem João apregoaram, e que ele soube sabiamente fazer frutificar, dizia que uma mulher de fortuna informara o rei de que um dos seus filhos de nome João, seria Rei de Portugal.  Pedro já tinha o seu herdeiro legítimo mas pensou sempre em João, filho de Inês de Castro. O pouco desenvolvido e atarracado filho de Teresa Lourenço, de testa curta, olhos pequenos sob aquela pálpebra gorda, com as bochechinhas salientes, caindo sobre o queixo que acabava em bico, não teria certamente esse glorioso destino... Enganou-se. A mãe do jovem não foi também relegada para as sombras do esquecimento. Recebeu vários bens e casas em Avis. Isto tudo antes do ano (1407) em que o Transtamara, com o auxílio dos franceses, captura o irmão e apunhala-o na própria tenda do condestável de França, ou na dele, segundo referiam os testemunhos. Henrique seria o novo rei de Castela e resolveria invadir a Galiza e Portugal onde se acoitavam os apoiantes do falecido rei Pedro. John Gaunt irá dirigir as hostilidades. Considera-se herdeiro pois casara com uma filha de Pedro de Castela. O rei de Portugal não quer participar abertamente no conflito. Pelo menos não acedera ao pedido de apoio do rei castelhano, antes da morte dele, quando veio a Portugal. Para permanecer na paz assina um acordo com Henrique, em Outubro ou Novembro de 1404.
A política interna de Pedro de Portugal geria-se por uma verdadeira demanda da justiça. Percorre o País, como um louco, a fazê-la cumprir, como se tivesse consciência de que o tempo lhe iriafaltar. Ainda trata do casamento de D. Isabel, filha ilegítima do filho Fernando, com o irmão da rainha de Aragão. Teria uma neta casada com o rei Frederico da Sicília. No entanto, isso, para infelicidade dela, não se consumou. Nesse ano, João professava na Ordem de Avis e o rei ainda concedeu Unhões a meu tio Afonso Telo e mais terras patrimoniais a ele e à família». In Seomara da Veiga Ferreira, Leonor Teles, ou o Canto da Salamandra, 1998, Editorial Presença, Lisboa, 1999, ISBN 942-23-2347-4.

Cortesia de Presença/JDACT