«(…) É este carácter sagrado que vai exigir
a punição de quem lhe causar a morte e é também por isso que a própria Diana se
encarrega de retirar do campo de batalha o corpo inanimado da sua protegida para
lhe dar sepultura na sua pátria: Haec cape et ultricem pharetra deprome
sagittam: hac, quicumque sacrum uiolarit uolnere corpus, Tros Italusque, mihi
pariter det sanguine poenas. Post ego nube caua miserandae corpus et arma inspoliata
feram tumulo patriaeque reponam. (Toma
estas armas e retira desta aljava uma seta vingadora: que, por meio dela, me
pague com o seu sangue quem quer que, Troiano ou Itálico, tiver violado com uma
ferida o seu corpo sagrado. Depois, eu mesma, no recôncavo de uma nuvem,
levarei o corpo da desventurada e as armas de que não será despojada e a hei-de
depor num túmulo, na sua pátria). Assim, Arrunte terá de
morrer às mãos de Ópis, lugar-tenente de Diana, logo após a morte de Camila.
É interessante constatar o afastamento da deusa na altura das mortes de Camila
e de Arrunte, como que a querer significar que uma imortal não se pode
contaminar, com o bafejo sequer, da morte. O mesmo se passa, de maneira ainda
mais explícita, no Hipólito de Euripides, onde Ártemis, quando se
aproxima o momento da morte do seu protegido, se retira e diz: Adeus! A
mim não me é lícito ver pessoas mortas, nem os olhos manchar diante dos mortais
que soltam o último suspiro. Ora, já que se trata do comportamento dos
deuses, poderemos apontar outra semelhança entre o episódio de Camila
e o Hipólito de Euripides : em ambos os casos, os deuses não
interferem nas realizações de outras divindades. No caso de Camila,
Diana não vai contra os fata que condenam a sua protegida e, mais
tarde, Apolo não concede a Arrunte o regresso à pátria, porque iria interferir
com a condenação a que Diana o votou. No Hipólito, Artemis diz
que um deus não interfere nos propósitos dos outros deuses.
Mas há uma outra característica que, desde a
primeira apresentação de Camila, no final do catálogo das
forças itálicas, nos faz olhar para ela como um ser sobrenatural. Trata-se,
evidentemente, da sua extraordinária velocidade, para a qual poderemos
encontrar uma predestinação no voo sobre o Amaseno: Ela voaria sobre o
cimo verdejante de uma seara sem lhe tocar e sem danificar, na sua corrida, as
tenras espigas, ou, suspensa nas ondas encapeladas, caminharia sobre o mar, sem
molhar na superfície líquida as plantas dos seus pés velozes. É esta sua velocidade que, depois de
ter sido ludibriada pelas artimanhas do guerreiro, lhe vai permitir vingar-se
do filho de Auno, quando consegue ultrapassar o galope fugitivo do cavalo do Lígure.
Todas estas características, pelo seu aspecto sobre-humano, nos apresentam uma
jovem brilhante e cheia de luz. Será
que esta intensa luminosidade se vai manter nos aspectos puramente humanos?
A resposta é afirmativa, ainda que tenhamos de colocar algumas restrições. A
aparição de Camila, ao terminar o catálogo das forças aliadas de Turno, é
tão esplendente que causa assombro às mulheres e aos jovens que contemplam com
admiração o seu manto de púrpura, descaído pelas costas, a fíbula de ouro a
adornar-lhe os cabelos e o seu porte altivo no comando das tropas: Vindo
das casas e dos campos, toda a juventude e uma multidão de mães a admiram e a
contemplam no seu desfile, boquiabertos e de espírito estupefacto diante do
adorno real que lhe cobre de púrpura os delicados ombros, diante da fíbula de
ouro que lhe prende os cabelos e ao verem como leva a aljava lícia e o mirto
pastoril, arvorando-o na ponta de uma lança.
É com este pormenor das roupagens de Camila
que Virgílio termina o canto VII do Poema
e nos deixa com uma visão de maravilha e garridice, mas também de vaidade
feminina que pressagia o desenlace fatal. Mas é no combate que esta figura vai
receber ainda maior lustre. A virgem, desde sempre habituada a proelia
dura pati apresenta-se a Turno cheia de confiança em si própria e chega
mesmo a propor-se para ir, apenas com as suas tropas, defrontar as forças de
Eneias que, dizia-se, se aproximava de modo ameaçador da cidade: Turno,
se a coragem deve ter, com razão, alguma confiança em si própria, eu ouso, e
prometo-te, marchar contra o esquadrão dos Enéadas, e sozinha enfrentar os
cavaleiros tirrenos. Turno,
porém, possuía dados mais completos sobre a situação militar e não aceita esta
proposta, mas a autoconfiança de Camila vai ter oportunidade de ser
confirmada e assume tal significado, que Júpiter tem de intervir para incitar
Tárcon ao combate e assim restabelecer o equilíbrio de forças. Este aspecto
luminoso vai lançar ainda alguns lampejos nos momentos finais da heroína. Com
efeito, apesar de disposta a viver mais tempo, ainda tenta arrancar a lança
que, fatal, a atingiu, encara a morte com calma. É esta calma que lhe permite
preocupar-se com os outros, nomeadamente através do envio de uma mensagem
militar a Turno. Só depois deste aviso a Turno é que larga as rédeas e se deixa
tombar, inanimada, para o solo». In João Manuel Nunes Torrão, Camila, A
Virgem Guerreira, Revista Humanitas, volume XLV, 1993, Universidade de Coimbra.
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