«O século XIII foi o século da mulher e das catedrais, uma época de culto à poesia, ao amor e à
inteligência que encontra uma das suas expressões mais completas na arte gótica
e permite a harmonia entre a beleza artística e a homenagem à deidade
cristã. No entanto, é também uma época de perseguições religiosas que obrigam à
clandestinidade e ao silêncio de personagens como a protagonista, filha de um
mestre pintor, e pintora que tomou a cargo a construção das catedrais de
Burgos, Leão e Chartres, e a entrar em contacto com um dos segredos mais bem
guardados, transmitidos de geração em geração entre o grémio dos arquitectos. O
Número de Deus, o segredo sobre o qual se sustentam as catedrais do novo estilo
importado de França».
O Algarismo e o Número
«A demão de cal ainda estava fresca. Com extraordinária
habilidade, Arnal Rendol acabava de traçar as linhas mestras do desenho que o
cabido da catedral lhe tinha encomendado para decorar a abside lateral
esquerda. Empoleirado num andaime de madeira, com várias lamparinas de azeite acesas
à sua volta, o mestre pintor inspeccionava o revestimento de cal com que os
seus ajudantes tinham coberto os blocos de pedra. Elegera a zona central da
abóbada, no ponto mais alto, para começar a pintar a cena da Virgem no momento
da Visitação. Junto ao andaime, ensimesmada ante a abóbada parcialmente coberta
por um branco reluzente e polido, a Pequena Teresa contemplava o pai sem perder
um único detalhe do movimento seguro e firme da sua experimentada mão, que ia e
vinha da esquerda para a direita e de cima para baixo enchendo de cor um
desenho traçado a preto. Teresa Rendol tinha cinco anos. Nascera em Burgos no
ano do Senhor de 1212, o da vitória
cristã na batalha de Navas de Tolosa, precisamente três anos após os
pais se terem instalado na cidade que era considerada cabeça do reino de
Castela, fugindo à perseguição que o papa Inocêncio III havia decretado contra
os hereges (?) do Sul de França. Os seus pais eram originários da vila occitana
de Pamiers e na sua terra haviam professado as crenças e os ideais de os irmãos perfeitos, os
cátaros, a quem a igreja romana considerava como hereges irredutíveis,
os quais havia que combater até à morte. Convencidos da força da sua fé, da
razão das suas crenças, da bondade dos seus sentimentos e de que eram os
verdadeiros imitadores de Cristo, os cátaros tinham logrado atrair
para o seu lado um grande número de gentes de todo o país do Languedoque , até
que Roma considerou que se tinham convertido num movimento demasiado perigoso e
que ante a sua contumácia não restava outro remédio do que iniciar contra
eles uma cruzada que os guiasse pela senda correcta traçada pela Igreja ou
os eliminasse da face da terra. Arnal Rendol conseguira boa reputação no
Languedoque como pintor de frescos de cenas religiosas. Membro de uma
prestigiosa linhagem de mestres pintores, tinha aprendido o ofício na oficina
do pai e a este devia também as suas crenças religiosas, que tentava plasmar em
todas as suas obras. Os cátaros consideravam-se a si
próprios como os perfeitos, os puros, os filhos da luz, e Arnal entendia que
não existia nada melhor para iluminar os seus ideais do que a pintura em
fresco.
A sua vida em Pamiers transcorrera feliz e com certo bem-estar,
que lhe proporcionavam as receitas que recebia ao realizar as encomendas de
murais de fresco, que não paravam de chegar à sua oficina. Naquele tempo, a
Europa inteira florescia e prosperava; os campos recém-arroteados
proporcionavam colheitas copiosas, o gado engordava nas abundantes e ricas
pastagens, os mercadores ganhavam verdadeiras fortunas comerciando com lã,
trigo, sal e especiarias, e os artesãos encontravam com facilidade mercados
onde acorriam endinheirados clientes ansiosos por adquirir os seus produtos; as
más colheitas, a fome, a peste e as doenças eram uma triste recordação de um
passado remoto. Arnal havia unido a sua vida a uma mulher também cátara e vivia
feliz na sua casa do burgo novo de Pamiers; uma vez conseguido o grau de
mestre, lograra fundar a sua própria oficina na qual chegaram a trabalhar três
oficiais e sete aprendizes. Mas naquele nefasto dia dos finais da Primavera de 1209 o mundo de sonhos que tinha
começado a construir fora por água abaixo de maneira estrepitosa. O belicoso
Simão de Monfort, homem decidido e impetuoso, irrompeu no Languedoque à frente de
um exército de soldados mercenários benzido pelo papa e assolou vilas e
aldeias, deixando à sua passagem um sangrento rasto de morte e dor sem conta. Os
cátaros foram perseguidos e massacrados aos milhares. Incapaz de
empunhar uma arma para se defender, tal como o obrigavam as suas crenças, e
antes que a injustiça pontifícia caísse sobre a sua alma cátara, Arnal Rendol e
a sua companheira Filipa fugiram para ocidente seguindo o Caminho Francês
que sob o nocturno céu leitoso da Via Láctea acaba em Compostela, ali onde a
lenda assinala que tinha sido enterrado o apóstolo Santiago.
Durante várias semanas, ocultando a sua verdadeira identidade
sob a inocente aparência de um casal de peregrinos a caminho de Compostela em
busca do perdão dos seus pecados, foram galgando etapas na estrada e afastando-se
da matança que as tropas pontificais estavam a perpetrar na sua terra. Em
finais do Verão, confundidos entre a maré de peregrinos, chegaram a Burgos. A
cidade castelhana, quase a metade do caminho entre os Pirenéus e Compostela,
fervilhava de bulício e de oportunidades para quem decidisse abrir uma loja ou
uma oficina. Nascida ao abrigo de uma grossa fortaleza, Burgos estava a crescer
graças às doações reais e aos negócios que surgiam por todo o lado em torno ao
caudal de peregrinos que faziam o Caminho. Quando Arnal e Filipa chegaram
àquela cidade, a catedral fundada pelo rei Afonso VI, o conquistador de Toledo,
estava terminada e vários pintores haviam recebido diversas encomendas para
decorar todo o interior com cenas bíblicas». In José Luís Corral, El Número de
Deus, 2004, O Número de Deus, O Segredo das Catedrais Góticas, tradução de
Carlos Romão, Planeta Editora, Lisboa, 2006, ISBN 972-731-185-7.
Cortesia de Planeta Editora/JDACT