sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Um Percurso Humano e Político nas Origens da Modernidade em Portugal. D. João II. Manuela Mendonça. «… que a tam honrradas heranças nunqua faltaram taes herdeiros, quaes lhes a ellas convem, porque em tamanhos casos, (...) tanto pera bem dos Regnos, quomo dos Reis delles, ho qual por sua infinda bondade tera a cargo estes, quomo ho attegora sempre fez»

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Afonso V e o seu herdeiro
«(…) Também Afonso V, jovem pai e jovem rei, certamente reconhecia e admirava a inteligência e capacidades desde cedo manifestadas pelo seu herdeiro, mas a busca da sua companhia era talvez mais determinada pela necessidade de estabelecer uma ligação sólida com o menino tão precocemente órfão de mãe. E não seria este movimento do rei ditado por uma acusação latente de ter sido causador dessa prematura morte? Nao teria esta procura alguma coisa a ver com a decisão de não ser identificado pelo próprio filho como o inimigo que estava do lado dos que assassinaram seu avô e eventualmente teriam contribuido para a morte prematura de sua mãe? Embora a inexistência de documentação, aliada ao carácter subjectivo da hipótese, nos impossibilite a sua demonstração, a informação veiculada pelos cronistas pode ilustrar um pouco do que dizemos.

A Etapa Africana
Na crónica de Afonso V encontramos pela primeira vez o testemunho duma decidida atitude deste monarca, relativamente a seu filho, quando no reino se resolveu a tomada de Arzila. Escreveu o autor: … detriminou ElRey a requerimento do principe seu Fylho, e contra conselho dos mais.pryncipaaes do Reyno de o levar nesta passajem comsygo. Esta atitude do monarca, se foi expressão da sua vontade de ter sempre consigo o Príncipe, não o foi menos da determinação e insistência do jovem. Se tomarmos como base de análise, para a insistência do Príncipe em acompanhar o pai, a narrativa que de todo o processo foi feita por Damião de Góis, somos confrontados com dois tipos prováveis de interpretação:
  • o príncipe João, no entusiasmo dos seus 15 anos, estava totalmente deslumbrado com a heroicidade e valentia do pai, cuja expressão máxima via manifestada neste projecto; consequentemente, no seu sonho de aventura, quis a todo o custo segui-lo. Este modo de agir, que dificilmente se identifica com a maturidade que Resende via no jovem príncipe, pode explicar-se pelo símbolo que as conquistas no norte de Africa foram para a dinastia de Avis;
  • os mesmos 15 anos, na sua necessidade de afirmação, no seu espírito de contradição, no seu ideal de desafio aos mais velhos, manifestavam-se, nesta atitude como um desafio ao próprio pai; necessariamente o rei teria de fazer uma escolha dificil: com o Conselho ou com o príncipe. Escudado na esperança de que a decisão do pai lhe seria favorável, o príncipe arriscou; ganhando, estava já a contrariar todos aqueles senhores que vinha identificando como estando do lado oposto ao seu.
Esta segunda interpretação tem certamente muito mais a ver com o crescimento e boas manhas que Resende viu no seu senhor. Se as duas hipóteses colocadas são pertinentes, a verdade é que a segunda deixa transparecer muito mais do carácter decidido, observador e ferspicaz do príncipe. Vamos deter-nos nalguns aspectos mais significativos da descrição de Damião de Góis para melhor podermos entender o significado da atitude de João. A afirmação com que inicia o capítulo, Quomo os pensamentos do príncipe em tudo passassem hos limites de sua idade, deixa de imediato a convicção de que o jovem não decidiu de ânimo leve; que o não teria feito por capricho também o cronista parece ter querido esclarecer quando afirmou que o príncipe andou alguns dias cuidoso, por se nam saber determinar se elle em pessoa descobrisse sua vontade a elRei, ou lha mandasse dizer per outrem; que tinha consciência da sua pouca idade e da leveza com que poderia ser tomada pelo rei e pelo Conselho a sua pretensão, também o cronista o testemunhou ao escrever que o príncipe considerendo que por ser tam moço quomo era poderia haver nelle menos authoridade da que convinha, pera per sim mesmo poder impetrar seu requerimento, determinou de descobrir sua tençam a dom Alvaro Castro, conde de Monsanto, por ser pessoa de que elle muito confiava, e saber que era muim acçepto a elRei. Destes três exemplos parece poder inferir-se que não houve imaturidade na pretensão do jovem, mas sim uma vontade muito forte de conseguir ver aprovada a sua ideia de acompanhar o Pai; por isso pensou na melhor maneira de convencer o Rei e buscou o modo mais provável de obter bons resultados. Decidiu-se a pedir ajuda, mas ao fazê-lo não hesitou em ameaçar que, a não ser aprovada a sua pretensão, de duas cousas se ha de seguir hüa: ou que de desprazer hei de cair em algüa grave doença, ou depois de Sua Alteza partido, ho hei de seguir, e se nam for quomo Prinçipe, será quomo hum aventureiro soldado. A sua decisão não se vergou perante as razões do amigo que, no meio de elogios por tanta generosidade, tentou convencê-lo que a sua ida não era oportuna, alegando-lhe para isso: a condição de recém-casado, que não deveria deixar a jovem esposa; o facto de ser herdeiro único e não ter ainda descendentes e, finalmente, o desgosto que daria à princesa sua mulher e que poderia até vir a ser causa da sua morte. Mas nenhuma destas razões serviu para demover o Príncipe; antes, para todas as razões encontrou apropriada resposta dizendo que do que tocara acerqua dos desgostos da Princesa, que hos homens nas cousas que lhe muito compriam, se de fecto eram homens, nam deviam ter nenhüa conta com as tenções, nem desejos das molheres, has quaes eram sempre mais inclinadas a seus particulares apetites, e vontades, que a toda bõa rezam, e honrra de seus maridos; que quanto a elle ser moço, que nessa parte lhe pareçia que tinha milhor causa, porque ha arte da guerra, na qual ha experiencia he a que se mais requere, nam se podia aprender bem, se nam na moçidade; e no que tocava ha sucçessam do Regno, posto que filho nam tevesse, soubesse de çerto, e que assi o podia dizer a elRei seu senhor, que a tam honrradas heranças nunqua faltaram taes herdeiros, quaes lhes a ellas convem, porque em tamanhos casos, Deos a cuja providençia tudo he presente, sempre ordena ho que he mais seu serviço, tanto pera bem dos Regnos, quomo dos Reis delles, ho qual por sua infinda bondade tera a cargo estes, quomo ho attegora sempre fez. Ou por força dos seus argumentos ou por determinação expressa da sua vontade, o Príncipe conseguiu convencer o conde a defender a sua causa junto de Afonso V; desta mediação resultou haver ho prinçipe ha liçença que tanto desejava». In Manuela Mendonça, D. João II, Um Percurso Humano e Político nas Origens da Modernidade em Portugal, Imprensa Universitária 87, Editorial Estampa, Lisboa, 1991, ISBN 972-33-0789-8.

Cortesia de Estampa/JDACT