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«A reutilização de monumentos, no todo ou em
parte, é uma prática antiquíssima, motivada fundamentalmente por motivos de
economia ou por razões de ordem simbólica, mais ou menos relacionada com o
imaginário cultural dominante num determinado momento histórico. Voltamos neste
artigo a reflectir sobre um dos casos mais interessantes conhecidos em Portugal,
o
da chamada Porta da Aramenha, em Castelo de Vide, a qual teria sido
transferida das ruínas da cidade
luso-romana de Ammaia,
situadas em S. Salvador de Aramenha, concelho de Marvão, cumprem-se exactamente
este ano (2010) três séculos. A razão que nos leva a retomar este
assunto, acerca do qual a bibliografia, embora não sendo vasta, é concorde
quanto à origem romana do arco da Porta da Aramenha, é a aparente dúvida agora suscitada
por Armin Stylow a propósito da romanidade da porta, em função da
iconografia da mesma. Eis o que o distinto epigrafista alemão escreveu sobre
este desaparecido monumento de Castelo de Vide numa recentíssima publicação a
propósito de documentação do tempo das Invasões Francesas relacionada com as
antiguidades de S. Salvador de Aramenha: A
porta foi demolida em 1891 e a inscrição conserva-se na Câmara Municipal de Castelo
de Vide. Na verdade, o edifício que aparece como sendo essa porta na foto
antiga publicada por Mantas 2000, detém uns rasgos claramente posteriores (da
época barroca?); se, de facto, se trata de uma das portas da Ammaia, deve ter
sido amplamente restaurada.
Stylow refere-se aqui à inscrição
setecentista outrora colocada sobre a porta em questão, à qual voltaremos a seu
tempo, e à referência que fizemos ao monumento numa comunicação apresentada à Mesa-Redonda
Sociedad y Cultura en Lusitania Romana, que teve lugar em Mérida
no último ano do milénio passado. Embora o comentário de Stylow seja pertinente
quanto ao aspecto geral da Porta da Aramenha, julgamos que grande parte
dos materiais terá sido realmente recuperada nas ruínas da cidade que no século
XVIII se identificava como Medóbriga (Guerra 1996), as quais, durante
séculos e até há bem poucos anos, forneceram materiais para construções muito diversas,
por vezes significativamente afastadas do seu local de origem. Seja como for,
cremos que o assunto merece ser retomado, no sentido de tentar precisar até que
ponto houve reutilização de materiais romanos na obra da Porta da Aramenha,
transformados ou não. Não podemos esquecer dois aspectos importantes desta
problemática, que são a construção à antiga, imitando modelos
romanos, que esteve tão em voga na época em que a porta foi edificada, assim
como a intenção simbólica subjacente a muitas dessas construções numa fase de
apogeu da afirmação do estado moderno, evidentemente inspirado pelo passado
romano. A reutilização, numa construção do tempo de João V, do arco
transportado da Aramenha insere-se perfeitamente nesta lógica de
identificação, ao gosto dos responsáveis políticos do estado centralizado e
absolutista.
Começa hoje a ser preciso algum esforço para
compreender o fenómeno, que a formação das elites
da época assentava sobretudo na cultura humanista, ainda que filtrada ou
curiosamente associada à componente religiosa, fosse ela católica ou
protestante. Naturalmente, o legado romano constituía o elemento principal
dessa formação, resultando com frequência por parte das classes cultas uma
vontade de ver como romano o que realmente nunca o foi, como aconteceu tantas
vezes, por exemplo, com as pontes. O interesse pelos monumentos romanos levou
muitas vezes à sua transferência, total ou parcial, ou à criação de falsas
ruínas, por vezes incluindo um ou outro elemento autêntico (Choay 2009). Apenas
a título de exemplo lembramos o projecto, felizmente não concretizado, de transferir
a Maison Carrée de Nîmes para Versalhes, as ruínas nos jardins do
palácio imperial de Schönbrunn, em Viena de Áustria, ou o Hornito de Santa
Eulália, em Mérida. Esta característica da cultura dos séculos que
correspondem à Época Moderna reflecte-se com muita frequência, de forma que
podemos considerar normal e sem intenção que se afaste da reflexão própria de
gente instruída, nos relatos de viagem da época, quer se trate de civis ou de
militares. Assim aconteceu com o texto agora divulgado por Armin Stylow,
extraído do diário redigido em 1810
por um oficial britânico, empenhado nas campanhas da Guerra Peninsular,
o coronel Alexander Dickson (Stylow 2009). Eis o que nos
interessa em relação ao arco de Aramenha: The gate by which we entered is
called the gate of Aramenha, and has a inscription over it, stating that in the
year 1710, the whole gate was brought from the ruins of the ancient city of
Meidobriga, about a league from this, where it stood, by order of the then
Governor of Castello de Vide, and re-erected as a gate on the fortifications of
the place, being the entrance from the Spanish frontier and the side of
Portalegre. The gateway is of large squared stones rough cut, is
of massive construction, not high, but nevertheless handsome, evidently Roman,
and is a perfect specimen of antiquity (Leslie 1905).
Ainda que esta breve alusão às
características construtivas da porta não possa resolver de forma
inquestionável a questão da origem romana do monumento não pode deixar de ser
tomada em conta, tanto mais que o seu autor conhecia bem as fortificações da
época e a referência que fez ao talhe dos blocos concorda com o que ainda hoje
se pode ver no local das ruínas de S. Salvador de Aramenha. Como acontece
noutros casos, tal como o do arco romano junto à Porta de Belcouce, em
Coimbra, não temos, pelo menos que conheçamos, outra descrição da Porta da
Aramenha. Cumpre aqui sublinhar que na narrativa do coronel Dickson,
oficial de Artilharia habituado ao rigor dos cálculos matemáticos, nada
encontramos que se aproxime das descrições delirantes que nos foram
transmitidas noutras situações, como sucedeu, por exemplo, com o discutido arco
romano da Praça do Giraldo, em Évora. Pena foi que José Cornide não
tivesse oportunidade de passar por Castelo Vide, por falta de tempo, limitando-se
a reconhecer que, ao contrário de Marvão, a vila não possuía uma posição
militar favorável. Cornide, que conhecia muito bem as antiguidades
romanas, não deixaria de acrescentar alguma coisa válida aos testemunhos sobre
o arco da Porta da Aramenha, como fez a propósito de muitas outras antigualhas
nos seus relatos de viagens por Espanha e Portugal (Abascal / Cebrián 2009)». In
Vasco Gil Mantas, O Arco da Aramenha em
Castelo de Vide, Revista Humanitas nº LXII, Universidade
de Lisboa, 2010, ISSN 0871-1569.
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