sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

O Arco da Aramenha em Castelo de Vide. Vasco Gil Mantas. «Na verdade, o edifício que aparece como sendo essa porta na foto antiga publicada por ‘Mantas 2000’, detém uns rasgos claramente posteriores (“da época barroca?”); se, de facto, se trata de uma das portas da “Ammaia”, deve ter sido amplamente restaurada»

A Porta da Aramenha, cerca de 1890, segundo postal de Martins Siva, Lisboa, 1904
jdact e wikipedia

«A reutilização de monumentos, no todo ou em parte, é uma prática antiquíssima, motivada fundamentalmente por motivos de economia ou por razões de ordem simbólica, mais ou menos relacionada com o imaginário cultural dominante num determinado momento histórico. Voltamos neste artigo a reflectir sobre um dos casos mais interessantes conhecidos em Portugal, o da chamada Porta da Aramenha, em Castelo de Vide, a qual teria sido transferida das ruínas da cidade luso-romana de Ammaia, situadas em S. Salvador de Aramenha, concelho de Marvão, cumprem-se exactamente este ano (2010) três séculos. A razão que nos leva a retomar este assunto, acerca do qual a bibliografia, embora não sendo vasta, é concorde quanto à origem romana do arco da Porta da Aramenha, é a aparente dúvida agora suscitada por Armin Stylow a propósito da romanidade da porta, em função da iconografia da mesma. Eis o que o distinto epigrafista alemão escreveu sobre este desaparecido monumento de Castelo de Vide numa recentíssima publicação a propósito de documentação do tempo das Invasões Francesas relacionada com as antiguidades de S. Salvador de Aramenha: A porta foi demolida em 1891 e a inscrição conserva-se na Câmara Municipal de Castelo de Vide. Na verdade, o edifício que aparece como sendo essa porta na foto antiga publicada por Mantas 2000, detém uns rasgos claramente posteriores (da época barroca?); se, de facto, se trata de uma das portas da Ammaia, deve ter sido amplamente restaurada.
Stylow refere-se aqui à inscrição setecentista outrora colocada sobre a porta em questão, à qual voltaremos a seu tempo, e à referência que fizemos ao monumento numa comunicação apresentada à Mesa-Redonda Sociedad y Cultura en Lusitania Romana, que teve lugar em Mérida no último ano do milénio passado. Embora o comentário de Stylow seja pertinente quanto ao aspecto geral da Porta da Aramenha, julgamos que grande parte dos materiais terá sido realmente recuperada nas ruínas da cidade que no século XVIII se identificava como Medóbriga (Guerra 1996), as quais, durante séculos e até há bem poucos anos, forneceram materiais para construções muito diversas, por vezes significativamente afastadas do seu local de origem. Seja como for, cremos que o assunto merece ser retomado, no sentido de tentar precisar até que ponto houve reutilização de materiais romanos na obra da Porta da Aramenha, transformados ou não. Não podemos esquecer dois aspectos importantes desta problemática, que são a construção à antiga, imitando modelos romanos, que esteve tão em voga na época em que a porta foi edificada, assim como a intenção simbólica subjacente a muitas dessas construções numa fase de apogeu da afirmação do estado moderno, evidentemente inspirado pelo passado romano. A reutilização, numa construção do tempo de João V, do arco transportado da Aramenha insere-se perfeitamente nesta lógica de identificação, ao gosto dos responsáveis políticos do estado centralizado e absolutista.
Começa hoje a ser preciso algum esforço para compreender o fenómeno, que a formação das elites da época assentava sobretudo na cultura humanista, ainda que filtrada ou curiosamente associada à componente religiosa, fosse ela católica ou protestante. Naturalmente, o legado romano constituía o elemento principal dessa formação, resultando com frequência por parte das classes cultas uma vontade de ver como romano o que realmente nunca o foi, como aconteceu tantas vezes, por exemplo, com as pontes. O interesse pelos monumentos romanos levou muitas vezes à sua transferência, total ou parcial, ou à criação de falsas ruínas, por vezes incluindo um ou outro elemento autêntico (Choay 2009). Apenas a título de exemplo lembramos o projecto, felizmente não concretizado, de transferir a Maison Carrée de Nîmes para Versalhes, as ruínas nos jardins do palácio imperial de Schönbrunn, em Viena de Áustria, ou o Hornito de Santa Eulália, em Mérida. Esta característica da cultura dos séculos que correspondem à Época Moderna reflecte-se com muita frequência, de forma que podemos considerar normal e sem intenção que se afaste da reflexão própria de gente instruída, nos relatos de viagem da época, quer se trate de civis ou de militares. Assim aconteceu com o texto agora divulgado por Armin Stylow, extraído do diário redigido em 1810 por um oficial britânico, empenhado nas campanhas da Guerra Peninsular, o coronel Alexander Dickson (Stylow 2009). Eis o que nos interessa em relação ao arco de Aramenha: The gate by which we entered is called the gate of Aramenha, and has a inscription over it, stating that in the year 1710, the whole gate was brought from the ruins of the ancient city of Meidobriga, about a league from this, where it stood, by order of the then Governor of Castello de Vide, and re-erected as a gate on the fortifications of the place, being the entrance from the Spanish frontier and the side of Portalegre. The gateway is of large squared stones rough cut, is of massive construction, not high, but nevertheless handsome, evidently Roman, and is a perfect specimen of antiquity (Leslie 1905).
Ainda que esta breve alusão às características construtivas da porta não possa resolver de forma inquestionável a questão da origem romana do monumento não pode deixar de ser tomada em conta, tanto mais que o seu autor conhecia bem as fortificações da época e a referência que fez ao talhe dos blocos concorda com o que ainda hoje se pode ver no local das ruínas de S. Salvador de Aramenha. Como acontece noutros casos, tal como o do arco romano junto à Porta de Belcouce, em Coimbra, não temos, pelo menos que conheçamos, outra descrição da Porta da Aramenha. Cumpre aqui sublinhar que na narrativa do coronel Dickson, oficial de Artilharia habituado ao rigor dos cálculos matemáticos, nada encontramos que se aproxime das descrições delirantes que nos foram transmitidas noutras situações, como sucedeu, por exemplo, com o discutido arco romano da Praça do Giraldo, em Évora. Pena foi que José Cornide não tivesse oportunidade de passar por Castelo Vide, por falta de tempo, limitando-se a reconhecer que, ao contrário de Marvão, a vila não possuía uma posição militar favorável. Cornide, que conhecia muito bem as antiguidades romanas, não deixaria de acrescentar alguma coisa válida aos testemunhos sobre o arco da Porta da Aramenha, como fez a propósito de muitas outras antigualhas nos seus relatos de viagens por Espanha e Portugal (Abascal / Cebrián 2009)». In Vasco Gil Mantas, O Arco da Aramenha em Castelo de Vide, Revista Humanitas nº LXII, Universidade de Lisboa, 2010, ISSN 0871-1569.

Cortesia da ULisboa/JDACT