«Ninguém entende ninguém. Tudo é interstício e acaso, mas está tudo
certo». In Fernando Pessoa
«(…) O criado veio servi-los, sóbrio mas familiar de modos, depois
afastou-se, agora a sala está silenciosa, nem as crianças levantam as vozes,
estranho caso, Ricardo Reis não se lembra de as ter ouvido falar, ou são
mudas, ou têm os beiços colados, presos por agrafes invisíveis, absurda
lembrança, se estão comendo. A rapariga magra acabou a sopa, pousa a colher, a
sua mão direita vai afagar, como um animalzinho doméstico, a mão esquerda que
descansa no colo. Então Ricardo Reis, surpreendido pela sua própria
descoberta, repara que desde o princípio aquela mão estivera imóvel, recorda-se
de que só a mão direita desdobrara o guardanapo, e agora agarra a esquerda e
vai pousá-la sobre a mesa, com muito cuidado, cristal fragilíssimo, e ali a
deixa ficar, ao lado do prato, assistindo à refeição, os longos dedos
estendidos, pálidos, ausentes. Ricardo Reis sente um arrepio, é ele quem o
sente, ninguém por si o está sentindo, por fora e por dentro da pele se
arrepia, e olha fascinado a mão paralisada e cega que não sabe aonde há-de ir
se a não levarem, aqui a apanhar sol, aqui a ouvir a conversa, aqui para que te
veja aquele senhor doutor que veio do Brasil, mãozinha duas vezes esquerda, por
estar desse lado e ser canhota, inábil, inerte, mão morta mão morta que não
irás bater àquela porta. Ricardo Reis observa que os pratos da rapariga vêm já arranjados
da copa, limpo de espinhas o peixe, cortada a carne, descascada e aberta a
fruta, é patente que filha e pai são hóspedes conhecidos, costumados na casa,
talvez vivam mesmo no hotel. Chegou ao fim da refeição, ainda se demora um
pouco, a dar tempo, que tempo e para quê, enfim levantou-se, afasta a cadeira,
e o rumor do arrastamento, acaso excessivo, fez voltar-se o rosto da rapariga,
de frente tem mais que os vinte anos que antes parecera, mas logo o perfil a
restitui à adolescência, o pescoço alto e frágil, o queixo fino, toda a linha
instável do corpo, insegura, inacabada. Ricardo Reis sai da sala de
jantar, aproxima-se da porta dos monogramas, aí tem de trocar vénias com o
homem gordo que também ia saindo, Vossa excelência primeiro. Ora essa, por quem
é, saiu o gordo, Muito obrigado a vossa excelência, notável maneira esta de
dizer, Por quem é, se tomássemos todas as palavras à letra, passaria primeiro
Ricardo Reis, porque é inúmeros, segundo o seu próprio modo de entender-se.
O gerente Salvador estende já a chave do duzentos e um, faz menção de a
entregar solícito, porém retrai subtilmente o gesto, talvez o hóspede queira
partir à descoberta da Lisboa nocturna e dos seus prazeres secretos, depois de
tantos anos no Brasil e tantos dias de travessia oceânica, ainda que a noite
invernosa mais faça apetecer o sossego da sala de estar, aqui ao lado, com as suas
profundas e altas poltronas de couro, o seu lustre central, precioso de
pingentes, o grande espelho em que cabe toda a sala, que nele se duplica, em
uma outra dimensão que não é o simples reflexo das comuns e sabidas dimensões
que com ele se confrontam, largura, comprimento, altura, porque não estão lá
uma por uma, identificáveis, mas sim fundidas numa dimensão única, como fantasma
inapreensível de um plano simultaneamente remoto e próximo, se em tal
explicação não há uma contradição que a consciência só por preguiça desdenha,
aqui se está contemplando Ricardo Reis no fundo do espelho, um dos inúmeros que
é, mas todos fatigados, Vou para cima, estou cansado da viagem, foram duas
semanas de mau tempo, se houvesse por aí uns jornais de hoje, questão de me pôr
em dia com a pátria enquanto não adormeço, Aqui os tem, senhor doutor, e neste
momento apareceram a rapariga da mão paralisada e o pai, passaram para a sala
de estar, ele à frente, ela atrás, distantes um passo, a chave já estava na mão
de Ricardo Reis, e os jornais cor de cinza, baços, uma rajada fez bater a porta
que dá para a rua, lá no fundo da escada, o besouro zumbiu, não é ninguém,
apenas o temporal que recrudesce, desta noite não virá mais nada que se
aproveite, chuva, vendaval em terra e no mar, solidão.
O sofá do quarto é confortável, as molas, de tantos corpos que nelas se
sentaram, humanizaram-se, fazem um recôncavo suave, e a luz do candeeiro que
está sobre a secretária ilumina de bom ângulo o jornal, nem parece isto um hotel,
é como estar em casa, no seio da família, do lar que não tenho, se o terei, são
estas as notícias da minha terra natal, e dizem, O chefe do Estado inaugurou a
exposição de homenagem a Mousinho de Albuquerque na Agência Geral das Colónias,
não se podem dispensar as imperiais comemorações nem esquecer as figuras
imperiais, Há grandes receios na Golegã, não me lembro onde fica, ah Ribatejo,
se as cheias destruírem o dique dos Vinte, nome muito curioso, donde lhe virá,
veremos repetida a catástrofe de mil oitocentos e noventa e cinco, noventa e
cinco, tinha eu oito anos, é natural não me lembrar, A mais alta mulher do
mundo chama-se Elsa Droyon e tem dois metros e cinquenta centímetros de altura,
a esta não a cobriria a cheia, e a rapariga, como se chamará, aquela mão
paralisada, mole, foi doença, foi acidente». In José Saramago, O Ano da Morte
de Ricardo Reis, Editorial Caminho, Lisboa, 1995, ISBN 972-21-0286-9
Cortesia de Caminho/JDACT