sábado, 20 de dezembro de 2014

O Vaticano contra Cristo. Religiões. Tradução de José A. Neto. I Millenari. «… a súplica do paralítico na piscina probática ‘Hominem non habeo’ que, em linguagem vaticana, significaria não ter tido a sorte de encontrar o dignitário adequado para a oportuna ‘cunha’ promocional»

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Guisado de cumplicidades
«(…) A presente obra não atinge esta benemérita categoria de prelados, silenciosos e modestos. Honra a vós, irmãos, porque o vento da vanglória não conseguiu arranhar a humildade da vossa vida interior, e, pela tardinha, podereis dizer ao Dono da vinha por vós cultivada e tornada fértil com as vossas melhores energias e com os vossos anos mais preciosos: somos servos inúteis e o esquecimento dos outros adequa-se-nos perfeitamente. Como Cristo, vosso modelo, vós, pedras angulares, fostes rejeitados pelos construtores de uma Igreja orientada para os seus uso e consumo. A época em que vivestes faz parte da vossa própria vida! Graças a este vosso testemunho silencioso, não compartilhamos a opinião de quem afirma que, no momento presente, o Vaticano não está em condições de identificar coralistas com as asas atrás das costas. A lista dos vossos nomes testemunha exactamente o contrário. A vossa travessia entre Cila e Carídes foi difícil: firmes no centro do barco para não se afastar do caminho certo, como adverte a Águia de Hipona: Ex uma parte saxa tu navifraga, ex altera parte fluctus tu navivora; tu autem rectam tene lineam; sic nec in Scillam nec in Caribdin incurris (Se vais para um lado o barco parte-se contra as rochas, se vais para outro devoram-no as ondas; fixa-te no centro para não incorreres nas ciladas de Cila e Carídes).
Há, ainda assim, quem pense edificar, à sombra da cupula de Miguel Ângelo, um pequeno templo dedicado à Mãe dos Excluídos da cúria. Aos seus pés, os marginalizados da Igreja, com o coração como Ana, mãe de Samuel que Heli julga embriagada, sabe-se lá quantas vezes lhe repetiriam a ela, que conhece bem a gíria local, a súplica do paralítico na piscina probática Hominem non habeo que, em linguagem vaticana, significaria não ter tido a sorte de encontrar o dignitário adequado para a oportuna cunha promocional.
A verificação de certos fenómenos aqui referidos diz mais respeito àquela minoria que nem sequer mereceria tanta atenção se não fosse o facto de ser a mais activa e determinante no governo da Igreja. É um fenómeno presente em todas as outras sociedades do mundo e, como tal, a Igreja não é excepção; nada do que é humano lhe é estranho, incluindo as imperfeições e as misérias dos seus dirigentes mais em evidência. Há crise na Igreja porque ela está no mundo e o mundo atravessa-a com as mesmas profundas inquietações de que sofre a sociedade, com os mesmos fermentos que fermentam na era pós-conciliar. A sua problemática assemelha-se à problemática da Idade Média, quando as personalidades mais sérias misturavam a extravagância do fausto e o pietismo mais sectário e mais dessacralizante; assim, conviviam e convivem tranquilamente, na mesma pessoa, os pecados sociais mais requintados, com a piedade mais delicada, a ostentação mais orgulhosa com a humildade mais ou menos sincera, a ambição do poder com a generosidade mais ostensiva a favor das igrejas e das obras de arte. A história eclesiástica está cheia deste perigoso guisado de cumplicidades. Não são os valores que estão em crise; é a cultura dos valores que está em crise, da mesma forma que o Sol não entra em crise quando as nuvens o escondem. Antes de tudo, crise quanto ao significado dos valores morais e crise de autoridade palpável no facto incontestável de que todos os altos cargos da cúria se apresentam ligados à fascinação da oferta do apoio mais eficaz, interno e externo, à Igreja. Todavia o mundo precisa da Igreja para resolver as suas crises recorrentes. Sem os caminhos interiores do espírito não se pode seguir direito e com dignidade pelos caminhos exteriores do mundo, dizia Ernest Bloch». In I Millenari, Via col vento in Vaticano, Kaos Edizioni, 1999, O Vaticano contra Cristo, tradução de José A. Neto, Religiões, Casa das Letras, 2005, ISBN 972-46-1170-1.

Cortesia Casa das Letras/JDACT