«(…) Outra questão seria a de saber até que ponto
as telas de Santa-Bárbara, cada uma por si ou todas em conjunto, assumem alguma
coisa da narratividade de que o romance de Saramago naturalmente é tributário.
O que bem se compreende, não só por força da basilar natureza modal do romance,
mas também como efeito derivado daquela outra narratividade que é própria de muitos
textos historiográficos ou similares (por exemplo, as biografias),
designadamente aqueles que o escritor terá lido para escrever o seu romance. Se
hoje a problematização da narratividade se alarga a outros âmbito modais (a
poesia) e até a práticas artísticas não-verbais (a música e a pintura),
com mais razão ela pode colocar-se quando falamos da
pintura como leitura do romance. Esta
é, contudo, uma questão que
ultrapassa os limites desta análise. Que a literatura constitui um fundamental
veículo de conhecimento de épocas, de costumes, de figuras e de acontecimentos
é bem sabido, como também se sabe que ele é de natureza diferente daquele que a
reflexão científica busca, incluindo-se aqui o conhecimento histórico facultado
pela historiografia. Porque o conhecimento que a literatura permite modeliza-se
em função de factores normalmente alheios ao discurso científico: a
configuração de mundos ficcionais, sem obrigação de verificação empírica ou de
validação documental; a propensão para a elaboração simbólica, metafórica ou alegórica;
a vocação para cultivar, na linguagem verbal que em primeira instância suporta
o discurso literário, procedimentos estilísticos de muito variada feição.
Quando a literatura se faz romance, o
conhecimento que dela decorre tende, em todo o caso, a homologar-se (como é
óbvio, a homologia é coisa diversa da analogia) ao da historiografia. Por isso,
o romancista e historiador Alexandre Herculano dizia, em 1840, que o noveleiro
[entenda-se: novelista] pode ser mais verídico do que o historiador; porque
está mais habituado a recompor o coração do que é morto pelo coração do que
vive; e acrescentava: Essa [a novela] é a história
íntima dos homens que já não são: esta [a história] é a novela do passado. O raciocínio de simetria que Herculano
explana inviabiliza-se quando, muito depois do idealismo romântico que o
determinou e em tempo de pulsões pós-modernistas, o romance, em provocatória
radicalização do seu poder evocativo, fomenta visões alternativas da História e
desafia o conhecimento que dela temos. Por isso, faz sentido dizer que a ficção histórica pós-modernista constrói e
desenvolve dispositivos de contraditória conjectura e autorreflexividade, de
modo a questionar a natureza do conhecimento histórico, tanto de um ponto de
vista hermenêutico como de um ponto de vista político. Conforme é notório, uma parte importante
da ficção de José Saramago constitui uma activa interpelação da História,
através da palavra do romance. Desde Manual de Pintura e Caligrafia (1977)
e Levantado do Chão (1980) que assim aconteceu, então ainda
de forma moderada. Mas é o romance Memorial do Convento que constitui,
no conjunto da produção saramaguiana, uma verdadeira pedra angular, em vários
aspectos e também naquele a que me reporto: tanto do ponto de vista temático,
como no que toca às estratégias narrativas nele instauradas, como ainda pela
peculiaridade do seu estilo, Memorial do Convento revelou-se um momento
de viragem técnica e de refinamento ideológico, reafirmando a vocação para
aquela interpelação da História que ficou referida e que foi retomada, em
termos diferentes, na História do Cerco de Lisboa (1989).
De forma
necessariamente sintética e antes de voltar a figuras históricas presentes no Memorial
do Convento, trato de recordar que um traço evidente da ficção de José
Saramago é, por certo, o impulso para operar uma revisão da História, em função
de um ponto de vista ideológico que subverte imagens e heróis aparentemente
estabilizados pela historiografia oficial». In Carlos Reis, Figuração da personagem, A ficção
meta-historiográfica de José Saramago, Departamento de Línguas, Literaturas e
Culturas, Academia, Universidade de Coimbra.
Cortesia
da UCoimbra/JDACT