sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

El rei João II. Crónica Esquecida. Seomara Veiga Ferreira. «…. ‘braço de São Jorge; a outra sobre um golfo largo que chega a Galipoli e a outra até norte onde está o porto de mar...’ As grandes cidades de miragem que a grandeza do passado enobrecia… ‘Onde estão agora, com excepção de Roma que continua a ser o centro do nosso mundo?’»

jdact

O Primeiro Voo do Falcão
«(…) No mesmo ano em que nascemos rebentou a guerra na Inglaterra entre as casas de Lencastre e de York. Como símbolo duas rosas, uma branca, outra cor de sangue, e inicia-se o confronto em Saint Albans. Sempre as guerras e o sangue no rasto estéril do homem. Já bastava Mahomet derrubando as muralhas de Constantinopla, fazendo de Santa Sofia o templo pagão dos seguidores do Profeta! As frases são como os homens: morrem e são substituídas sempre por outras melhores ou piores. Quando Justiniano, ao rever-se na colossal cúpula de Santa Sofia, gritou: Salomão, eu venci-te!, não poderia prever que um turco de tez pálida e cabelos castanhos-claros, de olhos amarelos como os dos gatos, fosse arrasar as defesas da cidade e ajoelhar-se no mesmo recinto, transformado em mesquita, para orar a Allah. Ainda é do meu tempo, segundo a descrição de alguns viajantes, o erguer de minaretes na Aya Sofia Camii (isto no linguajar turco), que o imperador cristão tanto amou e de que tanto se orgulhou. Frei Jerónimo, frei João Sobrinho, homem da Teologia e que ensinou em Oxford, na Inglaterra, e que foi amigo e mestre de El Rei Duarte I, e outros, todos os homens cultos do seu tempo, os viajantes, os frades mendicantes, os que percorriam o mundo para cumprir uma promessa ou para aumentar seu mantimento e cabedal falaram de Constantinopla como se referissem um sonho. Frei João Sobrinho e frei Jerónimo encontraram pessoas que por lá passaram e viveram. Nas cortes europeias doutos teólogos e escritores discorriam sobre a última sede do poder de Roma no Oriente, a herdeira de Constantino, o Grande, da sua extensão e beleza, feita como um escudo em três pontas do qual uma se acha sobre o estreito ou braço de São Jorge; a outra sobre um golfo largo que chega a Galipoli e a outra até norte onde está o porto de mar... As grandes cidades de miragem que a grandeza do passado enobrecia e fazia protegidas dos deuses: Roma, Constantinopla e Antioquia. Onde estão agora, com excepção de Roma que continua a ser o centro do nosso mundo? Eu, que toda a vida quis escrever a história de Roma e de Alexandre, sinto mais que ninguém esse fluir inexorável do tempo e aqui, em Nápoles, onde vou desembarcar para prosseguir o meu caminho, começo a sentir a pequenez do mundo e a da minha alma! E mesmo que eu tivesse visto com os meus olhos do corpo, como a viu meu avô pela leitura de um texto de um escritor árabe, a dez passos a oeste da igreja de Santa Sofia, a grande coluna de cem braças com o pedestal de mármore no topo onde se ergueu a grande estátua de Justiniano, não mudaria de opinião. Onde estará o seu cavalo de bronze e a coroa de ouro, pérolas e rubis? Onde estão as toneladas de ouro e pedras preciosas que enchiam dezenas de salas do seu palácio? Ah, o tempo, Deus meu, o tempo, como ele é o grande mestre e senhor! E foi preciso chegar aqui, a Nápoles, para aprender, enfim, isto! A verdade é que a única obra que nunca pretendi escrever é esta que redijo agora, e é também a única que ficará porque cresce dentro de mim como um filho e a arte é um dom e a prova, apesar das nossas mediocridades, de que ao homem foi concedida a suprema alegria de tentar, mesmo a um nível inferior e quantas vezes pueril, igualar-se nos actos supremos da beleza e da harmonia ao seu Criador.

No 11 de Maio o príncipe foi baptizado, na grande catedral, com pompa nunca vista em Lisboa, depois dos festejos do casamento da sua tia imperatriz. Nove dias depois toda a corte se mexia de novo, em alegria, com o casamento de outra tia, D. Joana, em Córdova, com o gordo rei Henrique IV de Castela. O pai, o alegre e orgulhoso Afonso, o quinto de nome, estava radiante, levando com os familiares mais chegados, onde se incluía também, os anos cevam os ódios!, prima e cunhada Filipa que saíra de Odivelas, trajando majestosamente como toda a corte, aliás, para acompanhar ao altar o pequeno João que iria amá-la toda a vida e respeitá-la como a uma mãe. D. Isabel, feliz, sabe que venceu a partida e que o amor do rei não irá nunca desaparece. Olha-o, aquele jovem apaixonado, aureolado pela perfeição espiritual de um Amadis, o cavaleiro doirado das novelas de cavalaria, pelo sonho eterno do amor e da cruz, o infatigável buscador do Graal, apesar dos seis trabalhos sobre Astronomia e Alquimia e os estudos de Latim e Matemática. Ainda era cedo para o bom e honesto rei escolher para divisa a palavra Jamais, como o faria a partir de Dezembro desse ano..., e Isabel nesse momento, e porque às vezes Deus é também bom e sábio, apesar de todas as nossas dúvidas, não o podia adivinhar e achava-se a bem com o mundo e o seu próprio destino que parecia ter passado a mimá-la». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.

Cortesia de EPresença/JDACT