Stultifera
navis
«Ao final da Idade Média, a lepra desaparece
do mundo ocidental. Às margens da comunidade, às portas das cidades, abrem-se
como que grandes praias que esse mal deixou de assombrar, mas que também deixou
estéreis e inabitáveis durante longo tempo. Durante séculos, essas extensões
pertencerão ao desumano. Do século XIV ao XVII, vão esperar e solicitar,
através de estranhas encantações, uma nova encarnação do mal, um outro esgar do
medo, mágicas renovadas de purificação e exclusão. A partir da alta Idade
Média, e até o final das Cruzadas, os leprosários tinham multiplicado por toda
a superfície da Europa suas cidades malditas. Segundo Mathieu Paris, chegou a
haver 19.000 delas em toda a cristandade. Em todo caso, por volta de 1266, à época em que Luís VIII
estabelece, para a França, o regulamento dos leprosários, mais de 2.000 deles
encontram-se recenseados. Apenas na Diocese de Paris chegou a haver 43: entre
eles Bourg-la-Reine, Corbeil, Saint-Valère e o sinistro Champ-Pourri; e também Charenton.
Os dois maiores encontravam-se na periferia imediata de Paris: Saint-Germain e
Saint-Lazare; tornaremos a encontrar seus nomes na história de um outro mal. É
que a partir do século XV, o vazio se estabelece por toda a parte; a partir do
século seguinte, Saint-Germain torna-se uma casa de correcção para os jovens; e
antes de São Vicente, em Saint-Lazare existe apenas um único leproso, o senhor Langlois, prático leigo da corte.
O leprosário de Nancy, que figurou entre os maiores da Europa, mantém apenas
quatro doentes sob a regência de Maria de Médicis. Segundo as Memórias de Catel, teriam
existido 29 hospitais em Toulouse por volta do fim da época medieval: 7 eram
leprosários, mas no começo do século XVII apenas 3 são mencionados:
Saint-Cyprien, Arnaud-Bernard e Saint-Michel. As pessoas gostam de celebrar
o desaparecimento da lepra: em 1635,
os habitantes de Reims fazem uma procissão solene para agradecer a Deus por ter
libertado a cidade desse flagelo. Nessa época, há já um século o poder real
tinha assumido o controle e a reorganização dessa imensa fortuna que
representavam os bens fundiários dos leprosários; através de um ordenamento de
19 de Dezembro de 1543, Francisco I
tinha mandado proceder a seu recenseamento e inventário a fim de reparar a grande desordem que então havia nas gafarias;
por sua vez, Henrique IV prescreve, num édito de 1606, uma revisão das contas e destina as quantias que resultariam desse exame ao tratamento dos gentis-homens
pobres e dos soldados estropiados. O mesmo pedido de controlo é feito em 24
de Outubro de 1612, mas pensa-se
agora em utilizar as rendas abusivas na alimentação dos pobres.
De facto, a questão dos leprosários na
França só foi regulamentada ao final do século XVII, e a importância económica
do problema suscitou mais de um conflito. Não havia ainda, em 1677, 44 leprosários apenas na província do Dauphiné? A
20 de Fevereiro de 1672, Luís XIV
atribui às ordens de Saint-Lazare e do Mont-Carmel os bens de todas as ordens
hospitalares e militares, encarregando-as de administrar os leprosários do
reino. Cerca de vinte anos mais tarde, o édito de 1672 é revogado, e através de uma série de medidas escalonadas
entre Março de 1693 e Julho de 1695, os bens das gafarias passam aos
outros hospitais e estabelecimentos de assistência. Os poucos leprosos
dispersos ao acaso pelas 1.200 casas ainda existentes serão agrupados em
Saint-Mesmin, perto de Orléans. Essas prescrições são aplicadas primeiro em
Paris, onde o Parlamento transfere as rendas em questão para os
estabelecimentos do hospital geral; o exemplo é imitado pelas jurisdições
provinciais: Toulouse destina os bens de seus leprosários ao hospital dos
Incuráveis (1696); os de Beaulieu, na Normandia, passam para o Hôtel-Dieu
(hospital principal) de Caen; os de Voley são atribuídos ao hospital de
Saint-Foy. Sozinho, com Saint-Mesmin, o recinto dos Ganets perto de Bordeaux
permanecerá como testemunha.
Para um milhão e meio de habitantes no
século XII, Inglaterra e Escócia tinham aberto, apenas as duas, 220
leprosários. Mas já no século XIV o vazio começa a se implantar: no momento em
que Ricardo III ordena uma perícia sobre o hospital de Ripon (em 1342)
ali não há mais leprosos, atribuindo ele aos pobres os bens da fundação. O arcebispo
Puisel fundara ao final do século XII um hospital no qual, em 1434, apenas dois lugares tinham sido reservados
aos leprosos, caso se pudesse encontrá-los. Em 1348, o grande leprosário de Saint-Alban contém apenas 3 doentes; o
hospital de Romenall, em Kent, é abandonado vinte e quatro anos mais tarde, por
falta de leprosos. Em Chatham, a gafaria de São Bartolomeu, estabelecida em 1078, tinha sido uma das mais importantes
da Inglaterra: sob o reinado de Elizabeth, ali são mantidas apenas duas
pessoas, e ela é finalmente suprimida em 1627.
A mesma regressão da lepra se regista na Alemanha, talvez um pouco mais
lentamente; mesma conversão, também, dos leprosários, apressada como na
Inglaterra pela Reforma, que confia à administração das cidades as obras de
caridade e os estabelecimentos hospitalares. Foi o que ocorreu em Leipzig, Munique,
Hamburgo. Em 1542, os bens dos
leprosários de Schleswig-Holstein são transferidos para os hospitais. Em
Stuttgart, o relatório de um magistrado indica em 1589 que há já 50 anos não há mais leprosos na casa que lhes é
destinada. Em Lipplingen, o leprosário é logo povoado por incuráveis e
loucos.
Estranho
desaparecimento, que sem dúvida não foi o efeito, longamente procurado, de
obscuras práticas médicas, mas sim o resultado espontâneo dessa segregação e a
consequência, também, após o fim das Cruzadas, da ruptura com os focos
orientais de infecção. A lepra se retira, deixando sem utilidade esses lugares obscuros
e esses ritos que não estavam destinados a suprimi-la, mas sim a mantê-la a uma
distância sacramentada, a fixá-la numa exaltação inversa. Aquilo que sem dúvida
vai permanecer por muito mais tempo que a lepra, e que se manterá ainda numa
época em que, há anos, os leprosários estavam vazios, são os valores e as imagens
que tinham aderido à personagem do leproso; é o sentido dessa exclusão, a
importância no grupo social dessa figura insistente e temida que não se põe de
lado sem se traçar à sua volta um círculo sagrado». In Michel
Foucault, História da Loucura, Filosofia, Éditions Gallimard, 1972, Editora
Perspectiva, Colecção Estudos, tradução de José Netto, São Paulo, Brasil, 1978.
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