O Algarismo e o Número
«(…) Arnal, que levava várias semanas sem pintar, não pensou
duas vezes, e ao inteirar-se de que o cabido e o bispo procuravam artistas que
fossem capazes de plasmar as cenas da Bíblia numa parede, apresentou-se para
fazer uma prova. O cónego encarregado da obra da catedral, um austero e quase
etéreo indivíduo de perfil adunco e vivazes olhos pequenos e fundos, submeteu-o
a exame. Arnal desenhou com delicada precisão um pantocrátor, Cristo em figura
majestática rodeado pelos símbolos dos quatro evangelistas, a mesma cena que
tinha realizado em Pamiers Para obter o grau de mestre; perante a perfeição do
desenho, foi de imediato contratado. Teresa nasceu três anos depois de o casal
se ter instalado em Burgos. A rapariguinha tinha a íris da cor dourada da
areia. A mãe morrera na altura do parto e desde então Arnal tinha cuidado dela
com esmero, dedicando-lhe tanta atenção que quase não se separava um instante
do seu lado. Desde o momento em que começou a dar os primeiros passos, Teresa
costumava acompanhar o pai no trabalho. Enquanto o mestre de Pamiers desenhava ou
pintava sobre a parede caiada de alguma igreja, a menina sentava-se em frente
ao progenitor e observava como iam surgindo da sua prodigiosa mão anjos e
demónios, santos e pecadores, mártires e verdugos. Quando Amal preparava os
intensos pigmentos com que mais tarde coloriria os seus preciosos desenhos
sobre a cal fresca, Teresa contemplava extasiada os vermelhos de sangue, os
ocres-dourados, os verdes-esmeralda e os azuis cobalto; os seus olhos curiosos de
criança pareciam querer agarrar todos e cada um dos matizes de todos e cada um
dos tons que o pai criava misturando essências vegetais, óxidos metálicos e
pigmentos minerais.
Amal acabava de traçar o perfil do manto da virgem e estava a
ponto de começar a aplicar as primeiras pinceladas de azul-cobalto, quando
voltou os olhos para baixo. Empoleirado desde o alto do andaime, contemplou a sua
filhita que, encostada a uma das paredes, olhava para cima absolutamente
fascinada. – Teresa, disse-lhe, gostarias
de pintar? A rapariguinha fez um gesto afirmativo com a cabeça. -
Gostava, pai, mas não sei. - Não te preocupes, eu ensino-te. Arnal desceu do andaime
com precaução e pediu a um dos aprendizes que o ajudasse a subir a filha. - Não tens medo, não é verdade?
- Não, pai. - Tem muito cuidado e faz tudo o que eu mandar. Com
a ajuda do aprendiz, Arnal e a filha alcançaram a plataforma do andaime sobre a
qual o mestre occitano estava a pintar os úlltimos frescos da catedral. Uma
dúzia de candeias de azeite colocadas em círculo na plataforma do andaime iluminava
a parede recém-branqueada com cal sobre a qual Arnal traçara umas linhas pretas
que demarcavam os desenhos que tinha de colorir de imediato, antes que o
estuque secasse. A técnica de pintura de frescos requeria uma habilidade
extraordinária. As cores tinham de se aplicar necessariamente sobre a cal ainda
húmida, de modo a que os pigmentos penetrassem e se fixassem de maneira que,
quando secasse, a pintura não se soltasse e acabasse por desaparecer, ou com as
cores tão escuras que não ficassem com o aspecto luminoso e brilhante que era
requerido. - Pega nesse pincel, ensopa metade do comprimento das cerdas na
tigela de tinta azul e preenche o espaço que há entre estas duas linhas pretas;
fá-lo devagar, com movimentos seguros, sem medo, mas antes de dar cada
pincelada pensa bem no que vais fazer e nunca duvides. Se te enganares, não
haverá lugar a rectificações.
Teresa pegou no pincel, molhou-o com tinta tal como o pai
lhe tinha dito e aplicou-a no local que lhe tinha indicado. O pincel, guiado
pela mão da criança, deslizou sobre a superfície caiada com tal segurança que
deu a impressão a Arnal de ser manuseado por um bom oficial. Lentamente mas com
confiança e serenidade, Teresa preencheu o espaço de parede que o pai lhe tinha
delimitado. - Minha filha!, exclamou Amal emocionado, nunca tinha visto nenhum
aprendiz manejar o pincel com tanta segurança. É muito divertido, pai, gosto
disto. - Bem, nesse caso vou incluir-te entre os aprendizes da oficina. Ainda
és demasiado pequena para fazer certas coisas, mas podes ajudar a preparar as
tintas e até a preencher com tinta os desenhos que não apresentem muita
dificuldade. Se a tua mãe te pudesse ver agora, ficaria orgulhosa de ti. -
Gosto das cores, pai, sobretudo do azul. - O azul é a cor mais difícil de
conseguir, e a mais cara; bom, depois do púrpura, mas estes austeros
castelhanos não gostam muito do púrpura, preferem cores mais sóbrias. - A minha
favorita é o azul». In José Luís Corral, El Número de Deus, 2004, O Número de Deus, O
Segredo das Catedrais Góticas, tradução de Carlos Romão, Planeta Editora,
Lisboa, 2006, ISBN 972-731-185-7.
Cortesia de Planeta Editora/JDACT