quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Contos Proibidos. Rui Mateus. «Liberdade, Justiça e Transparência são sinónimos de Democracia. E sem esses ingredientes essenciais o regime português não passará de uma democracia com pés de barro. … a máxima de Séneca: ‘quem, podendo, não manda que o delito se não faça, manda que se faça’»

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Do triunfo da política ao estado dos juízes. Memórias de um partido desconhecido
«(…) Nos Estados Unidos também sopram ventos de mudança e, quando o 25 de Abril acontece em Portugal, já a administração republicana de Richard Nixon está ferida de morte com o caso Watergate. Quando James Carter e Walter Mondale lançam a sua plataforma eleitoral de cooperação internacional e de defesa dos Direitos Humanos, em 1976, Willy Brandt prepara-se para ser eleito presidente da Internacional Socialista, com base num programa de actividades não muito diferente dos valores proclamados pelos democratas americanos e com a firme intenção de pôr fim ao eurocentrismo, dando início a uma nova fase de cooperação internacional entre socialistas democráticos, que alcançasse todos os continentes. A Revolução Portuguesa tomara-se um marco essencial para a compreensão dos grandes acontecimentos políticos mundiais da segunda metade do século XX, se bem que os políticos portugueses, que pouco tinham feito para que o 25 de Abril acontecesse, também não a soubessem promover, nem conseguissem dela tirar os louros que, por direito próprio, Portugal merecia. A transformação pacífica de Portugal num país livre e democrático foi um acontecimento não só inédito como exemplar, que viria a contribuir de forma absolutamente decisiva para a falência de inúmeros regimes totalitários em África, na América Latina e no próprio Leste Europeu e para um desanuviamento da tensão nas relações internacionais. A descolonização total do Continente Africano e os processos de democratização na Península Ibérica e na América Latina seriam o primeiro resultado da Revolução de Abril. O fim do apartheid e das ditaduras comunistas no Leste Europeu, pela via do diálogo e do pluripartidarismo, seriam também consequência da vitória das forças democráticas, primeiro em Portugal, depois, como reflexo dessa vitória, encontrariam força suficiente no seio da Internacional Socialista e no seio da NATO para rejeitar soluções de submissão unilateral nos chamados diálogos Leste Oeste e Norte Sul.
Na base da força moral das forças democráticas, perante os graves conflitos entre o Leste e o Oeste e na escolha da via para a libertação dos Povos, nos anos 80, estaria sempre presente o exemplo português a que André Malraux chamaria a primeira vitória dos mencheviques sobre os bolcheviques. Bastaria referir, a este propósito, a situação de ruptura a que quase se chegou no seio da NATO por causa do regime sandinista na Nicarágua, sobre as propostas conducentes a um processo de desarmamento unilateral na Europa Ocidental e sobre um eventual apoio europeu a formas de luta armada a conduzir por países da Linha da Frente na África Austral, como forma de pôr fim ao regime do apartheid na África do Sul. Seria o exemplo da moderação da vitória dos mencheviques em Portugal que, na maior parte dos casos, mesmo quando a revolução portuguesa já parecia esquecida, cimentaria as decisões de bom senso que acabariam por prevalecer e moderaria os ímpetos revanchistas dos republicanos norte-americanos e os ataques de pacifismo serôdio de alguns socialistas europeus. Portugal esteve no epicentro de uma grande ameaça à paz tendo a solidariedade internacional, que nos faltou durante tantos anos, finalmente funcionado. Entre as várias opções que se colocariam aos capitães de Abril e as várias receitas preconizadas para Portugal prevaleceria o bom senso. Mas os partidos políticos e seus principais dirigentes rapidamente desperdiçariam este enorme património, em lutas intestinas e com vaidades provincianas.
Hoje, visto de fora para dentro, Portugal regressou ao seu estatuto de país insignificante e receptor. Não foram conseguidos os grandes objectivos da Revolução de Abril e o país encontra-se entre a Europa e a mediocridade. Parece que o povo português não consegue libertar-se do fatalismo da I República. Este meu livro de memórias, assim o espero, é também uma contribuição contra esse fatalismo. O chamado caso do fax de Macau ou caso Emaudio dar-me-ia o último argumento de peso para escrever este livro. A propósito de um conflito, em nada diferente dos conflitos que devassam o interior dos partidos políticos portugueses e que se prendem com situações de poder; a propósito de um financiamento político relativamente insignificante e em nada, a não ser no montante, diferente dos que têm sido feitos ao longo dos últimos vinte anos a partidos políticos e organizações afins, confundiu-se a árvore com a floresta e iniciou-se a investigação à corrupção em Portugal de tal forma que, ao contrário do que tem acontecido noutros países europeus, se inviabilizaria o conhecimento da verdade e, como tal, o combate à corrupção. Em vez de se optar por um esclarecimento idóneo e completo, a que os portugueses têm direito, sobre o estado da Nação em matéria de tráfico de influências e de corrupção, cortando o mal pela raiz ou, caso se verificasse que a verdade poderia ser fatal, a Assembleia da República em acto público entendesse fazer um acto de contrição para bem da democracia, criando moratórias e regras novas, o Ministério Público parece ter assumido a responsabilidade de definir o interesse nacional. Produzindo uma acusação sem provas numa total inversão de valores e, mesmo admitindo a convicção do investigador em relação a um crime que não existiu, ignorando a máxima de Séneca: quem, podendo, não manda que o delito se não faça, manda que se faça.
Não há Democracia sem a participação dos cidadãos na vida do seu país. Escolheu-se definir, em Portugal, que o enfâse dessa participação se faça através de partidos políticos. Mas faltam ainda definir regras estritas sobre a democracia interna nos partidos que os impossibilite de se transformarem, como tem vindo a acontecer em Portugal, em aparelhos burocráticos fechados que impedem essa mesma participação. E para além da ausência de regras que permitam, pela via individual, o acesso do cidadão à actividade política, não existem regras idóneas de financiamento dos partidos, nem de transparência para os políticos. Um pouco à semelhança dos pilares morais do regime, a Maçonaria e a Opus Dei, tudo se decide às escondidas, como se o direito dos cidadãos à informação completa e rigorosa de como são financiadas as suas instituições e dos rendimentos dos seus governantes e dos seus magistrados fosse algo suspeito, algo subversivo. Liberdade, Justiça e Transparência são sinónimos de Democracia. E sem esses ingredientes essenciais o regime português não passará de uma democracia com pés de barro. Acontecerá então, para mal de todos nós, a conversão do já em si negativo triunfo da política no temível estado dos juízesIn Rui Mateus, Contos Proibidos, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1996, ISBN 972-20-1316-5.

Cortesia de Dom Quixote/JDACT