Do triunfo da política ao estado dos juízes. Memórias de um partido
desconhecido
«(…) Nos Estados Unidos também sopram ventos de
mudança e, quando o 25 de Abril acontece em Portugal, já a administração republicana
de Richard Nixon está ferida de morte com o caso Watergate. Quando James Carter e Walter Mondale lançam a sua
plataforma eleitoral de cooperação internacional e de defesa dos Direitos
Humanos, em 1976, Willy Brandt prepara-se para ser eleito presidente da
Internacional Socialista, com base num programa de actividades não muito
diferente dos valores proclamados pelos democratas americanos e com a firme
intenção de pôr fim ao eurocentrismo, dando início a uma nova fase de
cooperação internacional entre socialistas democráticos, que alcançasse todos
os continentes. A Revolução Portuguesa
tomara-se um marco essencial para a compreensão dos grandes acontecimentos
políticos mundiais da segunda metade do século XX, se bem que os políticos
portugueses, que pouco tinham feito para que o 25 de Abril acontecesse, também
não a soubessem promover, nem conseguissem dela tirar os louros que, por direito próprio, Portugal merecia. A transformação
pacífica de Portugal num país livre e democrático foi um acontecimento não só
inédito como exemplar, que viria a contribuir de forma absolutamente decisiva
para a falência de inúmeros regimes totalitários em África, na América Latina e
no próprio Leste Europeu e para um desanuviamento da tensão nas relações
internacionais. A descolonização total do Continente Africano e os processos de
democratização na Península Ibérica e na América Latina seriam o primeiro
resultado da Revolução de Abril.
O fim do apartheid e das ditaduras comunistas no Leste Europeu, pela via
do diálogo e do pluripartidarismo, seriam também consequência da vitória das
forças democráticas, primeiro em Portugal, depois, como reflexo dessa vitória,
encontrariam força suficiente no seio da Internacional Socialista e no seio da
NATO para rejeitar soluções de submissão unilateral nos chamados diálogos Leste
Oeste e Norte Sul.
Na base da força moral das forças
democráticas, perante os graves conflitos entre o Leste e o Oeste e na escolha
da via para a libertação dos Povos, nos anos 80, estaria sempre presente
o exemplo português a que André Malraux chamaria a primeira vitória dos
mencheviques sobre os bolcheviques. Bastaria referir, a este propósito, a
situação de ruptura a que quase se chegou no seio da NATO por causa do regime
sandinista na Nicarágua, sobre as propostas conducentes a um processo de
desarmamento unilateral na Europa Ocidental e sobre um eventual apoio europeu a
formas de luta armada a conduzir por países da Linha da Frente na África
Austral, como forma de pôr fim ao regime do apartheid na África do Sul.
Seria o exemplo da moderação da vitória dos mencheviques em Portugal que, na maior
parte dos casos, mesmo quando a revolução portuguesa já parecia esquecida,
cimentaria as decisões de bom senso que acabariam por prevalecer e moderaria os
ímpetos revanchistas dos republicanos norte-americanos e os ataques de
pacifismo serôdio de alguns socialistas europeus. Portugal esteve no epicentro
de uma grande ameaça à paz tendo a solidariedade internacional, que nos faltou durante
tantos anos, finalmente funcionado. Entre as várias opções que se colocariam
aos capitães de Abril e as
várias receitas preconizadas para Portugal prevaleceria o bom senso. Mas os
partidos políticos e seus principais dirigentes rapidamente desperdiçariam este
enorme património, em lutas intestinas e com vaidades provincianas.
Hoje, visto de fora para dentro, Portugal
regressou ao seu estatuto de país insignificante e receptor. Não foram
conseguidos os grandes objectivos da Revolução de Abril e o país
encontra-se entre a Europa e a mediocridade. Parece que o povo português não
consegue libertar-se do fatalismo da I República. Este meu livro de memórias,
assim o espero, é também uma contribuição contra esse fatalismo. O chamado caso
do fax de Macau ou caso Emaudio dar-me-ia o último
argumento de peso para escrever este livro. A propósito de um conflito, em nada
diferente dos conflitos que devassam o interior dos partidos políticos
portugueses e que se prendem com situações de poder; a propósito de um
financiamento político relativamente insignificante
e em nada, a não ser no montante, diferente dos que têm sido feitos ao longo
dos últimos vinte anos a partidos políticos e organizações afins, confundiu-se
a árvore com a floresta e iniciou-se a investigação à corrupção em Portugal
de tal forma que, ao contrário do que tem acontecido noutros países europeus, se
inviabilizaria o conhecimento da verdade e, como tal, o combate à
corrupção. Em vez de se optar por um esclarecimento idóneo e completo, a
que os portugueses têm direito, sobre o estado da Nação em matéria de tráfico
de influências e de corrupção, cortando o mal pela raiz ou, caso se
verificasse que a verdade poderia ser fatal, a Assembleia da República em acto
público entendesse fazer um acto de contrição para bem da democracia, criando
moratórias e regras novas, o Ministério Público parece ter assumido a
responsabilidade de definir o interesse nacional. Produzindo uma acusação sem
provas numa total inversão de valores e, mesmo admitindo a convicção do
investigador em relação a um crime que não existiu, ignorando a máxima de
Séneca: quem, podendo, não manda que o
delito se não faça, manda que se faça.
Não há Democracia sem a participação dos
cidadãos na vida do seu país. Escolheu-se definir, em Portugal, que o enfâse
dessa participação se faça através de partidos políticos. Mas faltam ainda
definir regras estritas sobre a democracia interna nos partidos que os
impossibilite de se transformarem, como tem vindo a acontecer em Portugal, em
aparelhos burocráticos fechados que impedem essa mesma participação. E para
além da ausência de regras que permitam, pela via individual, o acesso do
cidadão à actividade política, não existem regras idóneas de financiamento dos
partidos, nem de transparência para os políticos. Um pouco à semelhança dos pilares morais do regime, a
Maçonaria e a Opus Dei, tudo se decide às escondidas, como se o direito dos
cidadãos à informação completa e rigorosa de como são financiadas as suas
instituições e dos rendimentos dos seus governantes e dos seus magistrados
fosse algo suspeito, algo subversivo. Liberdade, Justiça e Transparência são
sinónimos de Democracia. E sem esses ingredientes essenciais o regime português
não passará de uma democracia com pés de barro. Acontecerá então, para mal de
todos nós, a conversão do já em si negativo triunfo
da política no temível estado
dos juízes!» In Rui Mateus, Contos Proibidos,
Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1996, ISBN 972-20-1316-5.
Cortesia de Dom Quixote/JDACT