Texto
lido na cerimônia de encerramento do Fórum Social Mundial 2002
«(…) Tenho dito que para essa justiça dispomos já de um código de
aplicação prática ao alcance de qualquer compreensão, e que esse código se
encontra consignado desde há cinquenta anos na Declaração Universal dos
Direitos Humanos, aquelas trinta direitos básicos e essenciais de
que hoje só vagamente se fala, quando não sistematicamente se silencia,
mais desprezados e conspurcados nestes dias do que o foram, há quatrocentos
anos, a propriedade e a liberdade do camponês de Florença. E também
tenho dito que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tal qual se
encontra redigida, e sem necessidade de lhe alterar sequer uma vírgula, poderia
substituir com vantagem, no que respeita a rectidão de princípios e clareza de
objectivos, os programas de todos os partidos políticos do orbe, nomeadamente os da denominada esquerda,
anquilosados em fórmulas caducas, alheios ou impotentes para enfrentar as
realidades brutais do mundo actual, fechando os olhos às já evidentes e
temíveis ameaças que o futuro está a preparar contra aquela dignidade racional
e sensível que imaginávamos ser a suprema aspiração dos seres humanos.
Acrescentarei que as mesmas razões que me levam a referir-me nestes termos aos
partidos políticos em geral, as aplico por igual aos sindicatos locais, e, em
consequência, ao movimento sindical internacional no seu conjunto. De um modo
consciente ou inconsciente, o dócil e burocratizado sindicalismo que hoje nos
resta é, em grande parte, responsável
pelo adormecimento social decorrente do processo de globalização económica em
curso. Não me alegra dizê-lo, mas não poderia calá-lo. E, ainda, se me
autorizam a acrescentar algo da minha lavra particular às fábulas de La
Fontaine, então direi que, se não interviermos a tempo, isto é, já, o
rato dos direitos humanos acabará por ser implacavelmente devorado pelo gato da
globalização económica.
E a democracia, esse milenário invento de uns atenienses
ingénuos para quem ela significaria, nas
circunstâncias sociais e políticas específicas do tempo, e segundo a expressão
consagrada, um governo do povo, pelo povo e para o povo? Ouço muitas
vezes argumentar a pessoas sinceras, de boa-fé comprovada, e a outras que essa aparência de benignidade têm
interesse em simular, que, sendo embora uma evidência indesmentível o estado de
catástrofe em que se encontra a maior parte do planeta, será precisamente no
quadro de um sistema democrático geral que mais probabilidades teremos de
chegar à consecução plena ou ao menos satisfatória dos direitos humanos. Nada
mais certo, sob condição de que fosse, de facto, democrático o sistema de governo e de gestão da sociedade a que
actualmente vimos chamando democracia. E não o é. É verdade que
podemos votar, é verdade que podemos, por delegação da partícula de soberania
que se nos reconhece como cidadãos eleitores e normalmente por via partidária,
escolher os nossos representantes no parlamento, é verdade, enfim, que da
relevância numérica de tais representações e das combinações políticas que a
necessidade de uma maioria vier a impor sempre resultará um governo. Tudo
isto é verdade, mas é
igualmente verdade que a possibilidade de acção democrática começa e acaba aí.
O eleitor poderá tirar do poder um governo que não lhe agrade e pôr outro no
seu lugar, mas o seu voto não teve, não tem, nem nunca terá qualquer efeito
visível sobre a única e real força que governa o mundo, e portanto o seu país e
a sua pessoa: refiro-me, obviamente, ao
poder económico, em particular à parte dele, sempre em aumento, gerida pelas
empresas multinacionais de acordo com estratégias de domínio que nada têm que
ver com aquele bem comum a que, por definição, a democracia aspira. Todos sabemos que é assim, e contudo, por
uma espécie de automatismo verbal e mental que não nos deixa ver a nudez crua
dos factos, continuamos a falar de democracia como se se tratasse de algo vivo
e actuante, quando dela pouco mais nos resta que um conjunto de formas
ritualizadas, os inócuos passes e os gestos de uma espécie de missa laica. E
não nos apercebemos, como se para isso não bastasse ter olhos, de que os nossos
governos, esses que para o bem ou para o mal elegemos e de que somos
portanto os primeiros responsáveis, se vão tornando cada vez mais em meros comissários políticos do poder
económico, com a objectiva missão de produzirem as leis que a esse poder
convierem, para depois, envolvidas no açúcares da publicidade oficial e
particular interessada, serem introduzidas no mercado social sem suscitar
demasiados protestos, salvo os certas conhecidas minorias eternamente
descontentes... Que fazer? Da literatura à ecologia, da
fuga das galáxias ao efeito de estufa, do tratamento do lixo às
congestões do tráfego, tudo se discute neste nosso mundo. Mas o sistema
democrático, como se de um dado definitivamente adquirido se tratasse,
intocável por natureza até à consumação dos séculos, esse não se discute. Ora,
se não estou em erro, se não sou incapaz de somar dois e dois, então, entre
tantas outras discussões necessárias ou indispensáveis, é urgente, antes que se
nos torne demasiado tarde, promover um debate mundial sobre a democracia e as
causas da sua decadência, sobre a intervenção dos cidadãos na vida política e
social, sobre as relações entre os Estados e o poder económico e financeiro
mundial, sobre aquilo que afirma e aquilo que nega a democracia, sobre
o direito à felicidade e a uma existência digna, sobre as misérias e as
esperanças da humanidade, ou, falando com menos retórica, dos simples seres
humanos que a compõem, um por um e todos juntos. Não há pior engano do
que o daquele que a si mesmo se engana. E assim é que estamos vivendo. Não tenho mais que dizer. Ou sim, apenas uma palavra para pedir um instante
de silêncio. O camponês de Florença acaba de subir uma vez mais à torre da
igreja, o sino vai tocar. Ouçamo-lo, por favor». In José Saramago, Este Mundo da Injustiça Globalizada, Texto
lido na cerimónia de encerramento do Fórum Social Mundial 2002, Ciberfil
Literatura Digital, 18 de Março de 2002.
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