«Uma
vez que, desde início, todos aprenderam por Homero, como ensinou Xenófanes,
vamos, nós também, a essa fonte, e até poremos de parte tudo o que lhe é
posterior, ainda que este tudo abranja algumas daquelas obras das quais se tem
dito, e com razão, que educaram a Europa. Refiro-me, em especial, à Ética
a Nicómaco, em que Aristóteles dedica a totalidade dos Livros VIII e
IX a definir a amizade e a classificar as suas formas. Mas também aos diálogos
em que o seu Mestre tentara definir a amizade e o amor (Lísis, Banquete, Fedro, se é esta, como
geralmente se pensa, a sua ordem de composição). Com maioria de razão,
deixaremos de lado as abordagens semióticas ou sociológicas modernas e as
polémicas havidas entre pensadores contemporâneos. Mais difícil vai ser
abstrair da distinção entre amor e amizade, e sobretudo pôr
completamente de parte a terminologia a que os helenistas estão habituados:
efectivamente, […] não faz parte do vocabulário homérico, embora ele já
comportasse abstractos formados com o sufixo […] a partir de um
adjectivo, como […] para encontrar o futuro equivalente de amizade, teremos de
avançar até Teógnis de Mégara; é com um outro derivado de […], o
substantivo abstracto […], formado com o sufixo […], muito
corrente em qualquer época da língua grega, que teremos de contar para abranger
dois tipos de afectos dissemelhantes: o amor e a amizade (e
note-se de passagem que é ainda de […] que Empédocles há-de falar, ao referir
o princípio que une os quatro elementos). É o contexto, pois, e não a
terminologia usada, que nos permite recuperar os nossos conceitos. Assim, Ájax,
ao proferir o seu breve e incisivo discurso, no termo da embaixada a Aquiles,
acusa-o de não se deixar demover pela
amizade dos companheiros.
Por outro lado, as relações sexuais, e
torne-se desde já claro que, nos Poemas Homéricos, elas são sempre
heterossexuais, têm uma fórmula própria, em que figura a mesma palavra. E eros?, é ainda e só um substantivo
abstracto, frequentemente associado a desejo.
Mais tarde, quando for deificado, será considerado, naturalmente, filho de
Afrodite. E assim, […], juntamente com persuasão,
e por vezes outras personificações ainda, farão parte do grupo que acompanha a
deusa do Amor. A primeira ocorrência de Eros como divindade surge no começo da Teogonia
de Hesíodo:
Primeiro
que tudo houve o Caos, e depois
a
Terra de peito ingente, suporte inabalável de tudo quanto existe,
e
Eros, o mais belo entre os deuses imortais,
que
amolece os membros e, no peito de todos os homens e deuses
domina o espírito e a vontade esclarecida.
A sequência do texto enumera depois a
geração de Caos e de Terra, sem mais referir Eros, o que tem levado os
comentadores a supor que ele é uma força geradora. Sem nos preocuparmos em
saber se a Teogonia é anterior à Ilíada ou não,
como hoje vários pretendem, voltemos ao eros
homérico. Ele não é ainda uma divindade, mas uma pulsão capaz de dominar
por completo o espírito. Um exemplo típico é o desta fala de Paris:
é
que jamais eros me
envolveu o espírito desta maneira
A situação é a mesma, quando transposta para
o plano divino no episódio do Dolo de Zeus, no momento em que o deus supremo avista
Hera:
assim
que a viu, logo eros lhe
envolveu o espirito prudente
Mas também pode ser, muito simplesmente, o
desejo ou apetite de algo que, normalmente, uma vez satisfeito, conduz à
saciedade. É assim que Menelau acusa os Troianos de não se saciarem da guerra, quando
para tudo há um limite do sono, do amor,
do doce canto e da ínclita dança. Assim também que figura na fórmula que
tantas vezes assinala o terminar de um banquete:
depois
que se saciaram de beber e de comer
Esta breve exemplificação terá demonstrado
que a conceptualização dos afectos, tal como a dos factores que regem o
comportamento humano, é extremamente imprecisa e flutuante em Homero. O que não
significa que eles não só existam, como determinem as formas de actuação das
figuras. Vejamos primeiro o caso mais evidente, a personagem de Aquiles, o
representante máximo da […] da Ilíada, e, portanto, a incarnação dos
mais altos ideais. Ele tem a consciência de ser o primeiro entre todos os
guerreiros, pelo que lhe cabem as honras correspondentes […], que se
traduz no presente de honra com que o
recompensam. Numa cultura de vergonha, como Dodds mostrou ser a da Ilíada,
aplicando-lhe com grande êxito essa terminologia vinda da antropologia
cultural, o segundo termo corresponde à materialização do primeiro, pelo que a
sua anulação se torna uma afronta intolerável». In Maria Helena Rocha Pereira,
Amizade, Amor e Eros na Ilíada, Revista Humanitas, volume XLV, 1993,
Universidade de Coimbra.
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