quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Eleonor na Serra de Pascoaes. António Cândido Franco. «… eu bem sei, ou não tivesse lido algumas histórias literárias, quantos séculos de inteligência são precisos para repor em termos justos o que foi desvirtuado por alguns anos de concertada estupidez»

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«(…) Contudo nos últimos anos tem-se assistido ao aparecimento de estudos que parecem colocar-se mais do ponto de vista do aprofundamento da interioridade da obra, que da sua estrita divulgação. E o caso dos estudos citados dedicados à poesia de Camões, ou ainda dos de Helder Macedo dedicados à poesia de Bernardim Ribeiro, estudos esses que nunca poderão ser desligados daqueles outros dedicados aos mesmos autores por Sampaio Bruno e Teixeira Rego, e ainda dos estudos de Yvette Centeno e Dalila Pereira Costa, ambos dedicados à poesia de Fernando Pessoa. Outros haverá ainda, que aqui me escapam e seria de justiça mencionar. É na linha de todos eles, que este nosso estudo se pretende também situar, visando assim minorar aquele desconhecimento em que a obra de Pascoaes vive, não tanto porque fale dela, contribuindo para a sua consagração pública e oficial, mas muito mais pelas preocupações que revela. Dizemo-lo de uma vez por todas: não é o silêncio que nos preocupa. O silêncio que eventualmente envolve hoje a obra de Pascoaes, por muitos inconvenientes que lhe traga a certos níveis, não é de modo nenhum preocupante. Aquilo que verdadeiramente preocupa é aquilo que se possa dizer hoje sobre Pascoaes, deturpando-o, alterando-o e domesticando-o como antes se fez com Camões e depois com Pessoa. Um Pascoaes oficializado, com um saudosismo inofensivo atrás de si, tratado sempre mais como excepção que como criador genial, é tão ridículo como o Camões que nos deram a estudar no liceu ou o Pessoa que nos têm dado hoje nos jornais, nas comemorações oficiais e até na publicidade comercial. Em meu entender é preferível um autor esquecido, mas intacto, que um autor consagrado, mas domesticado e deturpado. Jorge de Sena disse um dia, e contra si próprio talvez o disse: … eu bem sei, ou não tivesse lido algumas histórias literárias, quantos séculos de inteligência são precisos para repor em termos justos o que foi desvirtuado por alguns anos de concertada estupidez. Há verdades que não se afirmam senão com a maior prudência e o maior cuidado; a verdade de Pascoaes é uma delas.
Marânus foi publicado em 1911, situando-se desta forma num ponto de todo intermédio, num espaço que é balizado pela publicação em 1909 da Senhora da Noite e pela publicação em 1912 de Regresso ao Paraíso. Tanto um como outro destes dois poemas são paradigmas de uma poesia que não precisa de ser acto duplo, para ser conhecimento e criação. No primeiro caso, Pascoaes dá-nos uma interpretação quase sistemática da mecânica do Cosmos, que alia a beleza ao pensamento, enquanto que no segundo ele nos dá uma autêntica teogonia localizada, em que o verosímil da sua criação é já por si só um verdadeiro juízo de conjunto. Em ambos os poemas a unidade do ser, cósmico ou divino, não se acha dividida ou fracturada e não supõe uma homogeneidade do absoluto, que aniquile o mal, Regresso ao Paraíso, ou a noite, Senhora da Noite. Essa unidade não fracturada é justamente aquilo a que Pascoaes chama de saudade. Mas se o poema Senhora da Noite fundamenta uma cosmologia que apreende na totalidade o ser do Cosmos, e se Regresso ao Paraíso firma os alicerces de uma outra teogonia em que a apreensão ontológica do divino é dominante. Marânus tende a ser a compreensão mítica ou cosmológica, isto é transcendental, do homem, numa dimensão que tanto se rasga ao passado como se abre ao futuro». In António Cândido Franco, Eleonor na Serra de Pascoaes, Edições Átrio, Lisboa, Colecção o Chão do Touro, 1992, ISBN-972-599-042-0.

Cortesia de Átrio/JDACT