O ‘pobre
homem’ que não queria reinar
«Na
verdade, se há, na substancial História da França, monarcas infelizes, ao neto
do faustoso rei Bem-Amado, que foi o
décimo-sexto da extensa relação dos Luíses, cabe, indubitavelmente, as
palmas do martírio. Como soberano, o seu reinado foi dos mais tormentosos e
acidentados, e, como marido, talvez tivesse sido feliz somente pela sua
credulidade e confiança, o que, bem vistas as coisas, poderá ser uma forma de felicidade!,
a mulher, essa bela e galante Maria Antonieta da Áustria, tê-lo-ia iludido
milhentas vezes, com a volubilidade e versatilidade que historiadores
autorizados lhe apontam. Luís XVI era, realmente, o pobre homem, como a esposa geralmente o nomeava, com demasiadas
virtudes para reinar, se aceitarmos como boa a teoria do cínico Maquiavel. Ele
não tinha as condições essenciais para poder vencer, dominar o terrível
ambiente de rebeldia, de corrupção, de libertinagem, de espírito revolucionário
latente para que foi arrojado pelo destino. Sinceramente religioso, cheio das
melhores intenções para o seu povo, mas de carácter fraco, indeciso sempre
quanto às atitudes políticas a tomar, era presa fácil para as intrigas, tanto
dos cortesãos astuciosos como da própria rainha. Um inconsciente joguete nas
mãos dos que o rodeavam. Tal o retrato que dele traçam unanimemente os
cronistas. Filho do delfim Luís, neto de Luís XV, nasceu o infortunado Capeto, em 1754, na deslumbrante moldura de Versalhes. A morte do pai levou-o
à situação, para si indesejável, de herdeiro directo da coroa, com manifesto
desespero do avô: Esse balofo ente vai
deitar tudo a perder!, teria dito dele o Bem-Amado, tempos antes do seu passamento.
Mas,
se o avô não ficava satisfeito, parece que o desgosto do forçado herdeiro não
era menor. A perspectiva de algum dia reinar nunca lhe agradara, no que também
são unânimes em o reconhecer todos os seus biógrafos. Dir-se-ia que ele tinha a
percepção intuitiva das dificuldades que iriam deparar-se-lhe e o destino de
tragédia que o aguardava. O povo, porém, cansado de toda a sorte de escândalos
da realeza e da aristocracia, depositava no gordo e apático príncipe, devido à
grande reputação de virtudes que lhe engrinaldavam o espírito, as maiores
esperanças. O seu casamento, ainda delfim, com a volúvel Maria Antonieta, nos
princípios de 1770, acendera delirante
entusiasmo na alma popular. O júbilo do povo atingiu quase as raias da loucura
quando a formosa princesa austríaca fez a sua solene entrada em Paris, em Maio
desse ano. A expectativa para um feliz reinado era, portanto, das melhores. Quatro
anos após o seu auspicioso casamento, Luís XVI ascendia ao trono por morte do
avô. É então, que ele profere a histórica frase de desespero: Sou o
mais infeliz dos homens! Meu Deus, que fardo recebo na minha idade!
Nesse
momento, que para tantos seria de glória e satisfação, tornou-se patente o
seu desprazer do poder, para o qual não sentia a mais pequena espécie de
aptidão. E, ao receber, mais tarde, a coroa na cabeça, comentou, num esgar,
para o arcebispo de Reims: Ela incomoda-me! A época era,
realmente, de temível subversão de ideias. O povo agitava-se numa ânsia de
justiça social, de morigeração de costumes. A nação vivia numa impaciência
permanente, a que os violentos desmandos dos soberanos e da aristocracia a
tinham conduzido. Esses manifestos factores de desagregação monárquica constituíam,
sem sombra de dúvida, fortes obstáculos a uma governação pública hábil, mas, para
um timoneiro mais enérgico ou mais arguto, não eram de forma nenhuma insuperáveis.
Bastava, de facto, que Luís XVI volvesse um olhar para o passado do reino,
sempre envolvido ora em lutas intestinas ora em guerras com o exterior, para se
fortalecer esperançosamente com a visão de outras provas bem mais difíceis que
a monarquia atravessara já, por diversas vezes, e que galhardamente vencera». In Américo Faria, Dez Monarcas
Infelizes, Livraria Clássica Editora, colecção 10, Lisboa, s/d.
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LCEditora/JDACT