Carcassonne
«(…) O
senhor deve ter fé, disse o padre. Vivi mais de 80
anos e tenho mais fé do que tempo restante. O senhor tem tempo suficiente para
isso, disse o padre, sério. Os dois
homens com cotas de malha ficaram parados no topo da escada, silenciosos. A calade
soltou uma espécie de miado, mas quando o padre estalou os
dedos o pássaro encapuzado ficou imóvel e quieto. O senhor já recebeu os
sacramentos? O padre Jacques ia dá-los agora mesmo, respondeu o agonizante. Eu
farei isso, disse o padre. Quem é o senhor? Venho de Avignon. Do papa? De quem
mais? O padre andou pelo quarto, examinando-o, e o velho observou-o. Viu um
homem alto, de rosto duro, com os mantos de padre muito bem-cortados. Quando o
visitante levantou uma das mãos para tocar o crucifixo pendurado na parede, a sua
manga abriu-se, revelando um forro de seda vermelha. O velho conhecia esse tipo
de padre, duro e ambicioso, rico e esperto, do tipo que não ministrava aos
pobres, mas subia a escada do poder clerical na companhia dos ricos e
privilegiados. O padre se virou e espiou o velho com olhos verdes e duros. Diga,
onde está la Malice? O velho
hesitou um segundo além do que deveria. La Malice? Diga onde ela está, exigiu o
padre, e, como o velho não disse nada, acrescentou: venho em nome do Santo
Padre. Ordeno que me diga.
Não sei a resposta, sussurrou o velho. Então como posso
dizer? Um pedaço de lenha estalou no fogo, soltando fagulhas. Os frades
dominicanos têm espalhado heresias, disse o padre. Que Deus não permita,
respondeu o velho. Você as ouviu? O conde balançou a cabeça. Ouço pouca coisa
ultimamente, padre. O padre enfiou a mão numa bolsa pendurada à cintura e pegou
num pedaço de pergaminho. Os Sete Senhores Negros a possuíram, leu em voz alta,
e eles são amaldiçoados. Aquele que deve nos governar irá encontrá-la e será
abençoado. Isso é heresia?, perguntou o conde. É um versículo que os
dominicanos estão espalhando por toda a França. Por toda a Europa! Só existe um
homem para nos governar, e é o Santo Padre. Se la Malice existe,
é seu dever cristão me dizer o que sabe. Ela deve ser dada à Igreja! Quem pensa
diferente é herege.
Não sou herege, disse o velho. Seu pai era um Senhor Negro.
O conde estremeceu. Os pecados do meu pai não são meus. E os Senhores Negros
possuíram la Malice. Dizem muitas coisas a respeito dos
Senhores Negros, retrucou o conde. Eles protegiam os tesouros dos hereges
cátaros, disse o padre, e quando, pela graça de Deus, esses hereges foram
queimados, exterminados da terra, os Senhores Negros pegaram os seus tesouros e
os esconderam. Ouvi dizerem isso. A voz do conde mal passava de um sussurro. O
padre estendeu a mão e acariciou as costas do falcão. La Malice
está perdida há muitos anos, disse ele, mas os dominicanos dizem que
ela pode ser encontrada. E deve ser encontrada! É uma arma para trazer o reino
de Cristo à terra, e você a esconde! Não escondo!, protestou o velho. O padre
sentou-se na cama e inclinou-se perto do conde. Onde está la Malice?
Não sei. Você está muito perto do julgamento de Deus, velho. Portanto, não
minta para mim. Em nome de Deus, eu não sei.
E era verdade. Ele sabia onde la Malice estivera
escondida e, temendo que os ingleses a descobrissem, mandara seu amigo, o frei
Ferdinand, recuperar a relíquia, e presumia que o frade tivesse feito isso. E,
supondo que o frei Ferdinand tenha conseguido, o conde não sabia mais onde la Malice
estava. Logo, não havia mentido, mas também não dissera toda a
verdade ao padre, porque alguns segredos deviam ser levados para a sepultura. O
padre olhou o conde por um longo tempo, depois estendeu a mão para tirar a peia
do falcão. O pássaro, ainda encapuzado, subiu cuidadosamente no pulso do padre.
O homem levou-o até a cama e instigou o pássaro a ficar sobre o peito do
agonizante, depois soltou gentilmente o laço do capuz e levantou o couro de
cima dos olhos da ave. Esta calade é
diferente, disse ele. Ela não revela se você viverá ou morrerá. E sim se
morrerá em estado de graça e irá para o céu. Rezo para que eu vá. Olhe para o
pássaro, ordenou o padre». In Bernard Cornwell, 1356, 2012,
Editora Record, 2013, ISBN 978-850-140-371-1.
Cortesia
de ERecord/JDACT