domingo, 3 de março de 2019

A Favorita do Rei. Sandra Worth. «Depois, fecharam-me na adega. Estava escuro e húmido, e assustei-me por ficar sozinha. Bati à porta, gritei por socorro enquanto pude, mas de nada serviu e ninguém apareceu»

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A filha do rei. 1470
«(…) Um dia, a minha mãe entrou de rompante na sala em que eu tinha uma aula de música e disse-me que me despachasse porque tínhamos que fugir. Para onde vamos, mamã?, gritei, correndo atrás dela, agarrada ao meu alaúde. Despacha-te, despacha-te!, era só o que ela dizia. Atravessámos apressadas os salões do castelo, atrás dos meus meios--irmãos Tom e Dick Grey e dos criados que levavam ao colo as minhas irmãs Maria e Cecília, e fugimos pelas escadas da torre. Atravessámos o pátio ventoso e entrámos nos claustros da Abadia de Westminster. Um grupo de monges veio ao nosso encontro e abriu a porta da sala do capítulo para onde nos apressámos a entrar. Aqui no santuário estarão a salvo, aconteça o que acontecer, disseram eles e acenderam uns círios porque começava a anoitecer. A sala octogonal era grande, gelada e vazia. A minha mãe sentou-se na palha que cobria o chão e desatou a soluçar. A avó Jacquetta ajoelhou-se ao lado dela. Tem fé, Bel. Sê forte. Lembra-te do bebé que trazes no ventre. Eduardo voltará. Dar-lhe-ás um filho, se Deus quiser. Mamã, tenho fome, disse eu. Oh, que desgraça, que desgraça!, exclamou a minha mãe. Não temos nada para comer? Isabel, explicou a avó Jacquetta. Se fores boazinha, talvez os monges nos tragam pão de manhã. Agora, vai dormir. Obedeci e enrosquei-me em cima da palha. Sonhei com o meu pai nessa noite e em muitas noites a fio.
A medida que as semanas passavam, os meus irmãos, Tom e Dick Grev, que sempre me tinham hostilizado por o meu pai ser rei e o deles um simples cavaleiro, tornarem-se mais brandos para comigo. Tinham nascido do primeiro casamento da minha mãe com sir John Grey, morto em combate antes de a mãe desposar o papá. Dado o comportamento deles, era difícil adivinhar que Tom era um homem à beira dos treze anos e que Dick só tinha menos dois, pois mais pareciam rapazes brigões do que jovens cortesãos com boas maneiras. A culpa é toda do teu pai, exclamaram eles. Perdeu o trono e fugiu! Não é, não é!, exclamei, desatando a chorar. Mas sabia que eles tinham razão. O irmão do Fazedor de Reis, a cujo filho, Jorge Neville, eu estava prometida, virara-se contra o papá e obrigara-o a fugir de Inglaterra. Agora o papá encontrava-se na Borgonha, a tentar formar um exército para que pudesse lutar pelo seu trono.
Os dias custavam-nos muito a passar. Estávamos sempre com frio e com fome e recebíamos poucas visitas. Um dos que aparecia era um açougueiro chamado John Gould. Usava um avental ensanguentado, mas a carne que nos trazia por caridade alegrava-me o coração e confortava-me o estômago. Por gratidão, incluí o seu nome nas minhas orações diárias. Outra visita frequente era a de frei Bungery, de quem eu também não gostava porque havia qualquer coisa estranha nele. Mas a minha mãe e a minha avó não sentiam o mesmo e recebiam-no calorosamente, porque ele lhes trazia notícias. Juntavam-se a um canto da sala, cochichavam e partilhavam segredos.
Na véspera do Dia de Todos os Santos, quando a minha mãe estava prestes a dar à luz, os meus irmãos convidaram-me para brincar com eles. Depois, fecharam-me na adega. Estava escuro e húmido, e assustei-me por ficar sozinha. Bati à porta, gritei por socorro enquanto pude, mas de nada serviu e ninguém apareceu. Por fim, cansada, adormeci no chão de pedra entre as pipas de vinho. Uns sons estranhos acordaram-me e sentei-me, a esfregar os olhos. Era uma cantilena, que vinha de trás dos cascos de vinho junto da parede mais distante. A luz das tochas projectava sombras a toda a volta, mas eu distingui três vultos sombrios e encapuzados» In Sandra Worth, A Favorita do Rei, A Primeira rainha Tudor, 2008, tradução de Maria F. Duarte, Planeta Manuscrito, Lisboa, 2011, ISBN 978-989-657-165-8.

Cortesia de PlanetaM/JDACT