quarta-feira, 20 de março de 2019

O Faraó Negro. Christian Jacq. «Com Piankhi, o futuro estava bloqueado. Agarrado à sua Montanha Pura, ao seu templo de Amon e à sua capital, o faraó negro não tinha espírito empreendedor nem qualquer sentido comercial»

jdact e cortesia de wikipedia

«(…) A noite estava amena e Tranan, o director do Tesouro, saboreava a sua boa sorte. Sentado por baixo da palmeira mais alta do seu jardim, via aproximar-se o triunfo. Aos cinquenta e quatro anos, ocupava um dos postos mais em evidência do governo de Piankhi e vivia numa magnífica villano centro da cidade que um rico nobre tebano não teria desdenhado. Esposo feliz, pai de cinco filhos, tinha feito toda a sua carreira na administração de Napata e deveria satisfazer-se com a sua confortável situação. Mas era um dos raros dignitários a conhecer os verdadeiros recursos do reino de Piankhi, cuja pobreza era apenas aparente. Modestas culturas ao longo do Nilo, produtos da pesca e da caça, tâmaras... O inventário das riquezas naturais fazia-se depressa e podia-se concluir que Napata era a capital de uma região miserável. Seria esquecer a maravilha que o país núbio oferecia ao seu soberano: o ouro. Um ouro abundante e de bela qualidade. Se outrora os reis do Egipto tinham colonizado a Núbia, fora com a intenção de se apoderarem do precioso metal.
Actualmente, era o soberano negro que exercia a sua soberania sobre a exploração mineira e que possuía a totalidade da produção: assim eram suprimidas rivalidades e cobiças. Mas como utilizava Piankhi essa fortuna colossal? Dava-a ao templo de Amon e servia-se dela para prover ao bem-estar da população. O director do Tesouro já não suportava aquela política. Um soberano que se esquecia de enriquecer era um fraco que, mais cedo ou mais tarde, merecia ser eliminado. No seu lugar, Tranan teria dado ao povo o mínimo e levado uma grande vida em companhia dos seus próximos. Como a mulher começava a envelhecer, proporcionaria a si próprio jovens cortesãs e viajaria muito para ser admirado por príncipes estrangeiros durante faustosos banquetes.
Com Piankhi, o futuro estava bloqueado. Agarrado à sua Montanha Pura, ao seu templo de Amon e à sua capital, o faraó negro não tinha espírito empreendedor nem qualquer sentido comercial. Chegara a hora de proceder a uma mudança radical de política. O mordomo de Tranan trouxe-lhe uma taça de vinho fresco e bolos de mel. A vossa esposa espera-vos para o jantar, senhor. Ela que jante com as crianças e não me aborreça. Quando o meu visitante chegar, trá-lo para a sala de massagens e que ninguém nos interrompa. Tranan não podia agir só. É verdade que tinha o apoio de alguns cortesãos, mas farejariam o chão em frente de Piankhi se este elevasse a voz. Em contrapartida, uma das esposas secundárias, posta de parte pelo seu real esposo, sonhava vingar-se e estava suficientemente enraivecida para querer satisfazer a sua paixão destruidora. E Tranan disporia de um apoio ainda mais precioso: o do obeso personagem que acabava de entrar na sala de massagens.
Coberto de colares e de anéis de ouro maciço, Otokou pesava cento e sessenta quilos e mesmo mais depois das suas orgias de carnes, molhos espessos e pastéis de creme. Até a sua túnica era bordada de ouro e ninguém tinha o direito de lhe tocar sob pena de receber uma pancada fatal da sua maça de ouro. É que Otokou era o chefe da mais longínqua tribo da Núbia a maior parte de cujos membros se ocupava da extracção de ouro de primeira qualidade de uma gigantesca mina. Há já muito tempo que jurara felicidade ao faraó negro. Com o tempo, o seu juramento perdera o brilho.
Tendo em consideração o carácter colérico de Otokou, o director do Tesouro tinha-o abordado por meio de pequenos toques, com a mais extrema prudência, para conquistar progressivamente a sua confiança. Felizmente, o obeso apreciava presentes, em particular os cofres de madeira de ébano e as echarpes de lã que enrolava no pescoço de touro quando as noites refrescavam. A verdadeira tentação de Otokou eram as massagens. Durante várias horas por dia, entregava o corpo rotundo a mãos hábeis que o faziam estremecer de bem-estar. Quando Tranan lhe contara que tinha acabado de contratar uma massagista de notável talento, o obeso não descansara enquanto não a conhecera.
O costume da sua tribo exigia que Otokou não poisasse o pé em terra na presença de um inferior. Como o seu único superior era o faraó negro, o obeso foi introduzido em casa de Tranan numa cadeira de madeira dourada transportada com dificuldade por quatro robustos rapagões. A vossa visita honra-me ao mais alto ponto, senhor Otokou declarou Tranan, que sabia a importância que o seu visitante dava aos sinais de consideração. Tanto melhor, tanto melhor... Tenho dores nas costas. Ocupem-se de mim imediatamente. Era necessário subir três degraus que exigiram um rude esforço dos transportadores. Foi com uma certa graça, comparável à de um elefante a ajoelhar-se, que o seu senhor conseguiu deitar-se de barriga para baixo, enquanto um servidor lhe colocava uma almofada dourada por baixo do estômago. Onde está essa massagista que me prometeste? Ei-la, senhor». In Christian Jacq, O Faraó Negro, 1997, Bertrand Editora, 1998, ISBN 978-972-251-049-3.

Cortesia de BertrandE/JDACT