sábado, 9 de março de 2019

O Pêndulo de Foucault. Umberto Eco. «Ó que bela manhã de fins de Novembro, no princípio era o verbo, canta-me ó deusa do pélide Aquiles as damas e cavaleiros as armas e os barões. Ponto e vai ao principio sozinho»

jdact e wikipedia

Hokmah
«(…) Um golpe seco, igual a um disparo. Devia ser o telefone que caíra e batera contra a parede da cabina ou sobre aquelas prateleiras que ficam embaixo do telefone. Um alvoroço. Depois o dique do aparelho desligado. Certamente não por Belbo. Meti-me rápido no chuveiro. Precisava despertar. Não percebia o que estava acontecendo. O Plano era verdade? Mas que absurdo, se o havíamos inventado nós. Quem capturara Belbo? Os Rosa-Cruzes, o conde de San Germano, a Okrana, os Cavaleiros do Templo, os Assassinos? Aquela altura tudo era possível, já que tudo era inverossímil. Podia ser que Belbo tivesse perdido a razão, pois nestes últimos tempos andava muito tenso, não sei se por causa de Lorenza Pellegrini ou porque estivesse cada vez mais fascinado pela sua imaginação, ou melhor, o Plano era comum, nosso, meu, dele, de Diotallevi, mas era ele que parecia havê-lo levado, agora, para além dos limites do jogo. Inútil elaborar outras hipóteses. Fui até a editora, Gudrun acolheu-me com ácidas objurgações dizendo que tinha agora que carregar tudo nas costas, encontrei o envelope, as chaves e corri para o apartamento de Belbo. Cheiro de casa fechada, de guimbas râncidas, os cinzeiros atulhados até à boca, a pia da cozinha repleta de pratos sujos, a lixeira transbordando embalagens desventradas. Numa prateleira do estúdio, três garrafas de uísque vazias, a quarta ainda com dois dedos de álcool. Era o apartamento de alguém que havia passado os últimos dias sem sair, comendo o que havia, trabalhando como um louco, intoxicado. Eram duas peças ao todo tapadas de livros amontoados em cada canto, alguns servindo de calço às prateleiras que vergavam ao peso deles. Vi logo a mesa do computador, com a impressora ao lado, e o estojo de disquetes. Poucos quadros nos espaços de parede não ocupados pelas estantes, e bem em frente à mesa uma gravura seiscentista, reprodução emoldurada com carinho, de uma alegoria cuja presença eu não havia notado no mês anterior, quando lá fui beber uma cerveja, antes de sair de férias. Sobre a mesa, uma foto de Lorenza Pellegrini, com uma dedicatória em caracteres diminutos e um tanto infantis. Só se via o rosto, mas o olhar, já o olhar, me perturbava. Num movimento indistinto de delicadeza (ou de ciúme), voltei a foto sem ler a dedicatória.
Havia algumas fichas. Nelas procurei algo que pudesse interessar, mas eram apenas índices, planeamentos editoriais. No meio daqueles documentos encontrei no entanto o impresso de um ficheiro que, a julgar pela data, devia ter nascido das primeiras experiências com o word processor. De facto, intitulava-se Abu. Recordei-me de quando Abulafia fez a sua aparição na casa editora e do entusiasmo quase infantil de Belbo, dos muxoxos de Gudrun e das ironias de Diotallevi. Abu fora certamente a resposta pessoal de Belbo aos seus detractores, um divertimento goliárdico, de neófito, mas dizia muito do furor combinatório com que se aproximou da máquina. Belbo, que sempre afirmava, com o seu sorriso pálido, que a partir do momento em que havia descoberto não poder ser protagonista havia decidido ser espectador inteligente, é inútil escrever quando não se tem uma poderosa motivação, é melhor reescrever os livros dos outros, como faz um bom redactor editorial, ele havia encontrado na máquina uma espécie de alucinógeno; punha-se a dedilhar sobre o teclado como se fizesse variação sobre o tema de O Bife, no velho piano de sua casa, sem o menor temor de ser julgado. Não pensava criar: ele, tão aterrorizado pela escrita, sabia que aquilo não era criação, mas prova de eficiência eletrónica, exercício ginástico. Mas, esquecendo-se dos seus próprios fantasmas habituais, estava encontrando naquela brincadeira a fórmula para exercitar a adolescência de retorno, própria de um cinquentão. Em todo caso, e de qualquer modo, o seu pessimismo natural, o seu difícil acerto de contas com o passado, se haviam diluído no diálogo com uma memória mineral, objectiva, obediente, irresponsável, transistorizada, tão humanamente desumana que lhe permitisse não se advertir do seu costumeiro mal da vida.

Ficheiro: Abu
Ó que bela manhã de fins de Novembro, no princípio era o verbo, canta-me ó deusa do pélide Aquiles as damas e cavaleiros as armas e os barões. Ponto e vai ao principio sozinho. Prova, prova, prova parakaló, parakaló, com o programa certo faz até anagramas, e se escreveste um romance inteiro sobre um herói sulista que se chama Rhett Butler e uma jovem caprichosa de nome Scarlett O’Hara, e não estiver gostando, basta digitar uma ordem que Abu transforma o Rhett Butler em príncipe Andrei, a Scarlett em Natascha, Atlanta em Moscovo, e acabas de escrever Guerra e Paz.
Ó ventura, á vertigem da diferança, á meu leitor/escritor vítima ideal de uma ideal insónia, ó vigília de finnegan, á animal gracioso e benigno. Não te ajuda a pensar mas te ajuda a pensar por ele. Uma máquina totalmente espiritual. Escrever com pena de ganso deve arranhar os suados pergaminhos e requer que se molhe a cada instante, os pensamentos se atropelam e o pulso não mantém a linha; escrever à máquina as letras se acavalam, não podes avançar à velocidade de tua sinapse, mas apenas ao ritmo acanhado da mecânica. Com isto, com este (esta?) ao contrário os dedos fantasiam, a mente aflora o teclado, voando nas asas douradas, avalias finalmente a severa razão crítica logo à felicidade do primeiro toque. Voij struv btndi neste bloco fe tertalogua ortolaquína em memoria reponsde deum farloia subtil paraminguento, e apartune legalgitismamente num tlecando ao fim desis mesmo. Veja, estava batendo às cegas, e agora tomei aquele bloco de teratologia ortográfica e comandei a máquina para repetir tudo desde o princípio, fazendo as correcções, de modo que este aparecesse agora totalmente legível, perfeito, extraindo daquele angu um Puro Frumento». In Umberto Eco, O Pêndulo de Foucault, 1988, tradução de José Barreiros, Sicidea (Difel), 2008, ISBN 978-846-125-726-3.
                    
Cortesia de Sicidea/Difel/JDACT