Hokmah
«(…) Um golpe seco, igual a um disparo. Devia ser o telefone
que caíra e batera contra a parede da cabina ou sobre aquelas prateleiras que
ficam embaixo do telefone. Um alvoroço. Depois o dique do aparelho desligado.
Certamente não por Belbo. Meti-me rápido no chuveiro. Precisava despertar. Não
percebia o que estava acontecendo. O Plano era verdade? Mas que absurdo, se o
havíamos inventado nós. Quem capturara Belbo? Os Rosa-Cruzes, o conde de San
Germano, a Okrana, os Cavaleiros do Templo, os Assassinos? Aquela altura tudo
era possível, já que tudo era inverossímil. Podia ser que Belbo tivesse perdido
a razão, pois nestes últimos tempos andava muito tenso, não sei se por causa de
Lorenza Pellegrini ou porque estivesse cada vez mais fascinado pela sua
imaginação, ou melhor, o Plano era comum, nosso, meu, dele, de Diotallevi, mas
era ele que parecia havê-lo levado, agora, para além dos limites do jogo.
Inútil elaborar outras hipóteses. Fui até a editora, Gudrun acolheu-me com
ácidas objurgações dizendo que tinha agora que carregar tudo nas costas,
encontrei o envelope, as chaves e corri para o apartamento de Belbo. Cheiro de
casa fechada, de guimbas râncidas, os cinzeiros atulhados até à boca, a pia da
cozinha repleta de pratos sujos, a lixeira transbordando embalagens
desventradas. Numa prateleira do estúdio, três garrafas de uísque vazias, a
quarta ainda com dois dedos de álcool. Era o apartamento de alguém que havia
passado os últimos dias sem sair, comendo o que havia, trabalhando como um
louco, intoxicado. Eram duas peças ao todo tapadas de livros amontoados em cada
canto, alguns servindo de calço às prateleiras que vergavam ao peso deles. Vi
logo a mesa do computador, com a impressora ao lado, e o estojo de disquetes.
Poucos quadros nos espaços de parede não ocupados pelas estantes, e bem em
frente à mesa uma gravura seiscentista, reprodução emoldurada com carinho, de
uma alegoria cuja presença eu não havia notado no mês anterior, quando lá fui
beber uma cerveja, antes de sair de férias. Sobre a mesa, uma foto de Lorenza
Pellegrini, com uma dedicatória em caracteres diminutos e um tanto infantis. Só
se via o rosto, mas o olhar, já o olhar, me perturbava. Num movimento
indistinto de delicadeza (ou de ciúme), voltei a foto sem ler a dedicatória.
Havia algumas fichas. Nelas procurei algo que pudesse
interessar, mas eram apenas índices, planeamentos editoriais. No meio daqueles
documentos encontrei no entanto o impresso de um ficheiro que, a julgar pela
data, devia ter nascido das primeiras experiências com o word processor. De facto,
intitulava-se Abu. Recordei-me de quando Abulafia fez a sua aparição na casa
editora e do entusiasmo quase infantil de Belbo, dos muxoxos de Gudrun e das
ironias de Diotallevi. Abu fora certamente a resposta pessoal de Belbo aos seus
detractores, um divertimento goliárdico, de neófito, mas dizia muito do furor
combinatório com que se aproximou da máquina. Belbo, que sempre afirmava, com o
seu sorriso pálido, que a partir do momento em que havia descoberto não poder
ser protagonista havia decidido ser espectador inteligente, é inútil escrever
quando não se tem uma poderosa motivação, é melhor reescrever os livros dos
outros, como faz um bom redactor editorial, ele havia encontrado na máquina uma
espécie de alucinógeno; punha-se a dedilhar sobre o teclado como se fizesse
variação sobre o tema de O Bife, no velho piano de sua casa, sem o menor temor
de ser julgado. Não pensava criar: ele, tão aterrorizado pela escrita, sabia
que aquilo não era criação, mas prova de eficiência eletrónica, exercício ginástico.
Mas, esquecendo-se dos seus próprios fantasmas habituais, estava encontrando
naquela brincadeira a fórmula para exercitar a adolescência de retorno, própria
de um cinquentão. Em todo caso, e de qualquer modo, o seu pessimismo natural, o
seu difícil acerto de contas com o passado, se haviam diluído no diálogo com uma
memória mineral, objectiva, obediente, irresponsável, transistorizada, tão
humanamente desumana que lhe permitisse não se advertir do seu costumeiro mal
da vida.
Ficheiro: Abu
Ó que bela manhã de fins de Novembro, no princípio era o
verbo, canta-me ó deusa do pélide Aquiles as damas e cavaleiros as armas e os
barões. Ponto e vai ao principio sozinho. Prova, prova, prova parakaló,
parakaló, com o programa certo faz até anagramas, e se escreveste um romance
inteiro sobre um herói sulista que se chama Rhett Butler e uma jovem caprichosa
de nome Scarlett O’Hara, e não estiver gostando, basta digitar uma ordem que
Abu transforma o Rhett Butler em príncipe Andrei, a Scarlett em Natascha,
Atlanta em Moscovo, e acabas de escrever Guerra e Paz.
Ó ventura, á vertigem da diferança, á meu leitor/escritor vítima ideal de
uma ideal insónia, ó vigília de finnegan, á animal gracioso e benigno. Não te
ajuda a pensar mas te ajuda a pensar por ele. Uma máquina totalmente
espiritual. Escrever com pena de ganso deve arranhar os suados pergaminhos e
requer que se molhe a cada instante, os pensamentos se atropelam e o pulso não
mantém a linha; escrever à máquina as letras se acavalam, não podes avançar à
velocidade de tua sinapse, mas apenas ao ritmo acanhado da mecânica. Com isto,
com este (esta?) ao contrário os dedos fantasiam, a mente aflora o teclado,
voando nas asas douradas, avalias finalmente a severa razão crítica logo à
felicidade do primeiro toque. Voij struv btndi neste bloco fe tertalogua
ortolaquína em memoria reponsde deum farloia subtil paraminguento, e apartune
legalgitismamente num tlecando ao fim desis mesmo. Veja, estava batendo às
cegas, e agora tomei aquele bloco de teratologia ortográfica e comandei a máquina
para repetir tudo desde o princípio, fazendo as correcções, de modo que este
aparecesse agora totalmente legível, perfeito, extraindo daquele angu um Puro
Frumento». In Umberto Eco, O Pêndulo de Foucault, 1988, tradução de José Barreiros, Sicidea
(Difel), 2008, ISBN 978-846-125-726-3.
Cortesia de Sicidea/Difel/JDACT