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Meu primo foi coroado rei da Galiza ainda criança, há
mais de dez anos. Estou decidida a prosear com ele. Não lhe será Leão e Castela
herança que baste? Afonso arqueou as sobrancelhas, espantado: no lugar dele, eu
não prescindia de nada. Pois então, atalhou Fernão Peres, num tom irónico,
ainda bem que é com ele que temos de prosear, e não contigo. Irritado com novo
intrometimento, Afonso dirigiu-se à mãe: ainda não vejo o que a minha
investidura de cavaleiro tem a ver com esta história. Tua mãe, insistiu Fernão
Peres, pretende recordar a el-rei que tem um herdeiro varão, neto do imperador,
tal como ele, reforçando as suas pretensões... Não podemos falar a sós? Afonso
já não disfarçava a sua irritação, mas Fernão Peres, despeitado pela
interrupção, replicou: não há nada que lhe tenhas para dizer que eu não possa
ouvir. O jovem respirou fundo e dirigiu-se-lhe, olhando-o firme: exijo falar a
sós com minha mãe! Certamente, concordou dona Teresa, lançando um olhar
repreensivo ao amante. Subamos ao segundo andar, sugeriu Afonso, virando as
costas ao brilho furioso nos olhos verdes do nobre galego.
Chegados ao aposento que dividia com os seus companheiros,
o jovem, esgotado do treino, livrou-se da loriga, enquanto sua mãe se sentava
no único banco que ali se encontrava. Afonso sentou-se, por fim, sobre um dos
sacos de palha e considerou: não tencionais, então, prestar homenagem a meu
primo... Porque haveria? Insisto em que a herança do imperador seja dividida:
os reinos de Leão e Castela para o sucessor de minha irmã; o reino da Galiza,
que inclui o condado Portucalense,
para mim. Embora soubesse que os senhores portucalenses nunca aceitariam a
submissão ao reino galego, Afonso agradava-se destes planos de sua mãe.
Inquiriu: credes mesmo que o podereis convencer a prescindir da Galiza? Possuo
o apoio da mais poderosa família galega. Estas palavras tornaram a encrespar o
jovem: apoio? No que a isso diz respeito, andais com má fortuna, ultimamente. Uma
chama de fúria assomou nos olhos castanhos da rainha, que, porém, logo se apagou. Dona Teresa ensaiou até
novo sorriso: esses ricos-homens que me viram costas parecem adorar-te. Com
certeza que lhes agradará a tua investidura. O jovem engoliu a sua desilusão e
retorquiu, em tom despreocupado: começo a compreender o vosso repentino
interesse pela minha pessoa. Exibindo o vosso herdeiro, não só reforçareis as
vossas exigências perante meu primo, como esperais agradar aos senhores
portucalenses. És sagaz, sais a mim! Por Afonso Raimundes, não posso responder.
Mas, quanto aos barões, digo-vos já que a cartada de nada vos adiantará. O
problema deles chama-se Fernão Peres Trava!
Dona Teresa empertigou-se: estás a desviar-te do assunto.
Queres, ou não, ser armado cavaleiro? Não te agrada dar um sinal a teu primo,
recordá-lo de que existes e de que és, tanto como ele, neto do falecido Afonso
VI? O jovem considerou a oportunidade que se lhe oferecia. E acabou por
concordar acompanhar sua mãe e Fernão Peres.
Preparou-se a cerimónia e foi em Zamora, nas margens do rio
Douro, cidade leonesa que pertencia ao senhorio de sua mãe, que Afonso
Henriques se armou cavaleiro, em Março
de 1126. Os combatentes a cavalo hispânicos não possuíam obrigatoriamente
origem nobre, os cavaleiros vilãos dos concelhos, também conhecidos por coteifes, eram uma ajuda preciosa
no combate contra os mouros. Mas o cavaleiro originário da alta nobreza era
considerado um guerreiro divino, ao serviço de Deus, combatendo os infiéis e
protegendo os pobres e os fracos. Havia, por isso, que cumprir um ritual. Afonso
purificou o corpo e a alma: tomou banho, jejuou um dia inteiro e passou a noite
em vigília, numa capela. De manhã cedo, entrou na catedral de Zamora,
envergando uma vestimenta branca e comprida, que ostentava a cruz azul do
condado Portucalense. O bispo abençoou a espada e as esporas, em cima do altar.
Afonso tomou-as, armando-se ele próprio, como o faziam os filhos de monarca. Em
seguida, acompanhou o séquito de sua mãe ao lugar de Ricobayo, a fim de se
encontrarem com o jovem soberano. Afonso estava curioso, não só quanto à própria aparência do primo, como quanto à
sua reacção, perante as exigências da tia». In Cristina Torrão, Afonso Henriques, O Homem, Edição
Ésquilo, 2008, ISBN 978-989-809-249-6.
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