«(…) Amir parecia incapaz de a contrariar. Guiou-a pelo adarve
da alcáçova fora e passaram a curva na ponta noroeste, onde a couraça, o lanço
de escadas fortificadas, fazia a ligação à torre albarrã. Continuaram até à
torre na ponta nordeste, onde Amir constatou: os fugitivos aproximam-se do
almocavar! E não os podemos ajudar? Na sua fúria, Aischa dirigiu-se aos soldados
que estavam de guarda naquela torre: porque não se torna a abrir uma das portas, a fim de deixar entrar os coitados?
Seria arriscado demais, respondeu um dos homens. Muitos cruzados poderiam
aproveitar a oportunidade para se infiltrarem na al-qasbá. Os perseguidores não
são tantos como isso, insistiu ela. A maior parte parece ter ficado no bairro
de Alcamim, a fim de saquear as casas e os al-hurí. Além disso, acrescentou
Amir, apoiando-a, os moçárabes parecem levar a melhor nos combates junto ao
almocavar, põem muitos dos majus em fuga. Bem se podia abrir uma porta,
enquanto não surgem mais... Tarde demais, retorquiu o soldado, apontando para a
encosta da colina do acampamento português.
Aischa
olhou para a sua esquerda e os olhos dilataram-se-lhe ao aperceber-se de que os
homens de Ibn Errik vinham em ajuda dos seus aliados. E foi ali, junto ao
almocavar, o cemitério islâmico onde estava enterrada a sua mãe, que deram o
golpe de misericórdia naquele punhado de fugitivos moçárabes. A moça virou
enfim as costas aos acontecimentos e encostou-se ao merlão, respirando às
golfadas. O que mais a transtornava era porém a ideia de que a sua mãe teria
contribuído para aquela desgraça. Tinha a certeza que Zubaida intercedera junto
do seu Deus, para que os cruzados e os
homens de Ibn Errik levassem a melhor na refrega.
Não
devia ter-te trazido para aqui, murmurou Amir, afagando-lhe os ombros. Ele
olhava-a tão preocupado, que ela se arrependeu de o ter convencido a isso. Eu é
que fui a culpada. Devia ter-te dado ouvidos e... Mas o que vem a ser isto? Aischa
estremeceu, perante o semblante furioso do seu irmão mais velho. Abu agarrou-a
por um braço, arrancando-a das mãos de Amir: mas será que nunca aprendes? Os
dedos dele apertavam-na tanto, que ela sentiu as lágrimas chegarem-lhe aos
olhos. Sempre foste desobediente, sua desgraçada. Nem imaginas o que te faço,
assim que chegarmos... A culpa foi minha, interrompeu-o Amir. Convencia de que
não corria perigo. Não passas de um miúdo inconsciente! Não te atrevas a
ofender-me! Esqueceste de quem sou filho? E de que, se não fossem todos estes
contratempos, Aischa e eu já estaríamos casados? Abu resmungou algo
incompreensível, mas não continuou a admoestar o filho de um ulama, braço direito do alcaide. Deu mais um puxão a
Aischa e bradou: vamos! Em casa veremos o que... Eu acompanho Aischa a casa e
falarei com o vosso pai, intrometeu-se novamente Amir. Pedir-lhe-ei desculpa,
pois, ao contrário do que pensas, responsabilizo-me pelos meus actos.
Só
muito contrariado, Abu largou a irmã. Aischa suspirou de alívio. Sabia que Abu
não hesitaria em lhe dar uma sova, mas, com sorte, o pai ficaria por algumas
palavras de advertência. Malik Ibn Danaf tinha um fraco por aquela filha e,
além disso, Amir arcaria com a culpa. Quando já se encontravam fora do alcance
do irmão, sussurrou enternecida: obrigada. Amir beijou-lhe o alto da face, que
o véu descaído descobrira. Não me agradeças! Isto não foi nada, comparado com o
que eu me prontificaria a fazer por ti. O dia do nosso casamento será o mais
feliz da minha vida. Estas palavras deixaram Aischa sem respiração.
Causavam-lhe porém mais desconforto do que alegria. Por mais que Amir lhe
agradasse, ela acabava de se aperceber de que dificilmente conseguiria
retribuir a densidade do amor que ele sentia por ela.
Konrad,
que vivera três anos em Colónia, estava habituado aos bairros labirínticos e às
ruas estreitas das cidades, mas o arrabalde oriental de Lusbuna ainda assim
espantava-o. Com as suas casas implantadas nas rochas, as ruas, além de
íngremes, mediam no máximo oito pés de largura. O que se lhe revelava agora uma
vantagem, pois não lhe faltavam recantos e esquinas onde se esconder dos
besteiros mouros que vigiavam as redondezas, ao abrigo dos merlões. Konrad
percorria as ruelas sozinho. Mais uma vez, sentira o desejo irresistível de se
aproximar de Lusbuna, como se andasse à procura de algo... Só não sabia o quê! Depois
da ocupação do bairro de Alcamim pelos ingleses, os habitantes do arrabalde
oriental haviam-no abandonado, receando um ataque por parte dos alemães e
flamengos, acampados no monte em frente. Muitos desses pescadores e artesãos
tinham-se rendido ao cruzados, alguns até se prontificaram a lutar ao lado
deles, contra os mouros, por serem igualmente
cristãos. Tratava-se dos tais moçárabes, que praticavam os velhos ritos
visigóticos. Vivendo entre os muçulmanos, não tinham adoptado a nova liturgia
romana, introduzida na Hispânia há cerca de sessenta anos por Afonso VI de
Leão, o avô do rei português». In Cristina
Torrão, A Cruz de Esmeraldas, Edição Ésquilo, 2009, ISBN 978-989-809-261-8.
Cortesia de
Ésquilo/JDACT