quarta-feira, 20 de março de 2019

O Faraó Negro. Christian Jacq. «Em vez de preparar a sua defesa, o rei galopava no deserto para proporcionar a Valoroso, o seu cavalo preferido, os grandes espaços que o soberbo animal amava devorar…»

jdact e cortesia de wikipedia

«(…) Uma frágil síria, de cabelos curtos alourados, trepou para os rins do obeso e, com mão ágil, espalhou sobre a massa de carne um óleo morno e perfumado. O que é esta delícia?, perguntou Otokou, agradavelmente surpreendido. Óleo de festa proveniente de Tebas, senhor. Disseram-me que acalmou as dores de Ramsés o Grande em pessoa. Ágeis e precisas, as pequenas mãos da massagista desfizeram uma a uma as contracções musculares do gordo, que resmungou de contentamento. Tranan não quis interromper o tratamento. Não ficava Otokou a ser seu devedor? Perfeito, pequena, perfeito. Vão dar-te um saco de ouro em pó. Enquanto a síria se eclipsava, o chefe de tribo retomou o seu lugar na cadeira. Então, meu amigo Tranan, porque me fizeste vir à capital? Esta pequena massagista...
A tua síria é muito dotada, mas falemos de coisas sérias. Sabes que tenho horror às viagens e que detesto afastar-me da minha aldeia. Nervoso, Tranan andou de um lado para outro. O caso é grave, senhor. És o principal produtor de ouro do reino e eu o director do Tesouro. Juntamente com Piankhi, somos os únicos a saber a extensão da fortuna que a Núbia oferece. Devo ser-te sincero: na minha opinião, Piankhi faz mau uso dele. Estás a acusar o faraó de desonestidade? Não, mas de conformismo! A nossa capital adormece na sua riqueza porque Piankhi teima em respeitar tradições ultrapassadas. Muitos dignitários pensam como eu... Há vinte anos que ele reina e esquece exigências do futuro. Se tu e eu não interviermos, Napata corre para a sua ruína. Os olhos de Otokou tornaram-se minúsculos. E interviremos de que forma? Uma parte da corte está decidida a pôr em causa a legitimidade de Piankhi. Os mesmos que o elegeram sonham com um sucessor. Um sucessor que se chamaria..., Tranan?
Unicamente se o senhor Otokou aceitar tornar-se o novo director do Tesouro e ser honrado como merece. Receberei uma parte maior do ouro que a minha tribo extrai das entranhas da terra? É evidente! O obeso personagem ronronou, o que nele era um sinal de profunda satisfação. Tranan sabia que ia conseguir: nunca se aposta em vão sobre a cupidez. A partir de agora, os dias de Piankhi estavam contados. Otokou esticou-se como um felino e agarrou Tranan pela nuca. Há já muito tempo que te considero um pequeno crápula, indigno da função que o Faraó te confiou. Esqueceste um pormenor, Tranan: Piankhi e eu somos amigos há mais de vinte anos e os verdadeiros amigos não se traem nunca. Tranan não sairia da mina de ouro onde trabalharia até ao fim dos seus dias. Mas Otokou não se sentia mais sossegado por isso; apenas tinha esmagado uma vespa com o apetite maior do que o ferrão, enquanto que pesava sobre Piankhi uma ameaça séria.
Formado pelos Amigos e pelos Apoiantes do rei, pelos Anciãos e pelos Ritualistas, o grande conselho que tinha eleito Piankhi por unanimidade vinte anos antes parecia decidido a formular graves reservas sobre o comportamento do faraó negro. Baseavam-se em relatórios falsificados de Tranan, boatos espalhados por uma das esposas secundárias de Piankhi, palavras insidiosas de sacerdotes acusando sem razão o faraó negro de ter falta de devoção por Amon. Se Otokou tivesse tomado consciência a tempo do perigo, teria de boa vontade estrangulado por suas próprias mãos todos aqueles mentirosos; mas o grande conselho, com o seu rigor habitual, desencadeara um mecanismo que já ninguém podia deter. É evidente que Piankhi não teria qualquer dificuldade em refutar aquelas ignomínias, mas o seu bom nome seria afectado e, sobretudo, era capaz de renunciar à coroa para se retirar para o templo de Amon! Otokou conhecia bem o amigo e sabia que este não se agarraria ao poder se as circunstâncias lhe oferecessem uma ocasião para se afastar. Mas sabia também que ninguém estava preparado para substituir Piankhi e que a sua abdicação seria uma catástrofe para Napata, para a Núbia e para o Egipto.
Em vez de preparar a sua defesa, o rei galopava no deserto para proporcionar a Valoroso, o seu cavalo preferido, os grandes espaços que o soberbo animal amava devorar. E o homem e a sua montada não estariam provavelmente de regresso antes do grande conselho. A mais jovem das esposas secundárias de Piankhi, de dezassete anos, não havia meio de acalmar. É verdade que quando o pai a conduzira à corte de Napata lhe tinha explicado bem que nunca veria o faraó e que aquele casamento diplomático era indispensável para selar a unidade do monarca com a tribo do sul da quarta catarata de que ela era a herdeira. Mas a jovem não entendia assim as coisas: pois não era a mais bela do palácio, não merecia partilhar o leito do soberano e expulsar dele as suas rivais? Impulsivamente, tentara abrir à força as portas que a teriam conduzido até Piankhi, mas as suas tentativas desordenadas tinham-se saldado em fracassos. Os que rodeavam o rei, e particularmente o seu maldito escriba anão, impediam qualquer importuno de perturbar a sua serenidade». In Christian Jacq, O Faraó Negro, 1997, Bertrand Editora, 1998, ISBN 978-972-251-049-3.

Cortesia de BertrandE/JDACT