jdact
e cortesia de wikipedia
«(…)
Ela, filha de chefe de clã, esposa secundária, considerada como uma importuna!
Furiosa por ter sido alvo de uma tal afronta, tinha decidido vingar-se daquele
déspota incapaz de apreciar a sua beleza, revelando ao grande conselho que
Piankhi era corrupto e que desviava riquezas em seu proveito. Quando fosse
nomeado um novo faraó, não deixaria de reparar nela e de lhe conceder o seu verdadeiro
lugar. De momento, experimentava um colar de pérolas azuis, jaspe vermelho e
cornalina, separadas por finos discos de ouro. Prende-o ordenou à serva. Este
colar é digno de uma rainha... E tu não o és. Irritada, a jovem voltou-se e
ficou face a face com Abilé, a esposa principal de Piankhi! Este palácio
recebeu-te, minha jovem, e tu traís-te a sua confiança. Pior ainda, caluniaste
o Faraó e tentaste tornar-te a alma de uma conspiração. Assustada, a filha do
chefe de clã ergueu-se e não conseguiu senão balbuciar um fraco protesto. Semelhante
falta é passível de uma longa pena de prisão, mas não passas de uma criança já
de coração azedo. Não te lembres mais de sujar o nome de Piankhi, caso
contrário a minha indulgência desaparecerá e tornar-me-ei mais feroz do que um
tigre. Que ides fazer de mim? Vais voltar para a tua tribo onde as matronas te
ensinarão a trabalhar e a cuidar de uma casa Dá-te por muito feliz.
Aos noventa e sete anos, Kapa, o
decano do grande conselho, mantinha o olhar vivo e a palavra clara. Muito
magro, apenas fazia uma refeição frugal por dia no decurso de toda a sua existência,
não bebia álcool de tâmaras e dava um passeio quotidiano Os que o rodeavam receavam
o seu carácter rabugento, acentuado pela idade O contraste que formava com
Otokou, amador da boa carne, era surpreendente O obeso não sabia como abordar
aquele velho rezingão que recusava até uma taça de cerveja fresca A tua saúde Não
te preocupas mais com a minha saúde, Otokou, do que eu me preocupo com a tua
Onde se esconde o teu amigo, o rei? Foi para longe, a cavalo Os membros do
grande conselho comunicaram-me as suas conclusões e eu examinei-as com atenção Constataste
então que não passavam de disparates! Atreves-te a criticar o trabalho de
personalidades dignas de respeito? As informações que receberam são aberrantes
e mentirosas! É evidente que alguns invejosos pretenderam prejudicar Piankhi e
é conveniente que sejam castigados como merecem! Segundo ouvi dizer,
ocupaste-te pessoalmente de Tranan, o ex-ministro das Finanças Pu-lo a
trabalhar Piankhi é por vezes demasiado indulgente Compete aos seus amigos
livrá-lo das ovelhas ranhosas Sou o superior do grande conselho e não me
deixarei influenciar Quer agrade ou não ao rei, tem de comparecer perante nós o
mais depressa possível.
Com cinco anos, em plena força,
capaz de lançar sem fadiga os seus quinhentos quilos de músculos em longas
corridas, Valoroso era o melhor cavalo que Piankhi já tivera oportunidade de
treinar. Entre o homem e o animal, a amizade brotara desde o primeiro olhar e o
rei não tivera que fazer quaisquer esforços para se fazer compreender pelo
corcel, altivo, mesmo bravio, mas desejoso de satisfazer aquele a quem tinha
concedido a sua total confiança. Valoroso era um cavalo baio de crina fulva,
brilhante e sedosa, de patas altas, boca risonha, olhar directo e porte altivo.
Os cavaleiros do exército de Piankhi olhavam-no com admiração e inveja,
evitando aproximar-se muito perto. Todos sabiam que Valoroso apenas obedecia a Piankhi
e que se tornava selvagem quando qualquer outro tentava montá-lo. O rei
levara-o a descobrir grande quantidade de pistas partindo de Napata e o cavalo
tinha-as memorizado de forma surpreendente, sem nunca hesitar. Para regressar à
sua cavalariça particular, onde o próprio Piankhi tratava dele, Valoroso seguia
sempre pelo caminho mais curto. À força e à resistência, o cavalo aliava uma
aguda inteligência.
Do
cimo de uma alta duna, o faraó negro contemplava as vastidões desérticas. Estás
a ver, Valoroso, nenhum imperador quereria um país como este. Mas é ele que tu
e eu amamos porque nunca mente, porque nos obriga a ser implacáveis connosco
próprios e a venerar a luz toda-poderosa. O deserto e a terra cultivada são
estranhos um ao outro, não se casam e, no entanto, um faz compreender a
necessidade do outro. Grous coroados sobrevoaram o cavaleiro e a sua montada.
Ao longe, no cimo de outra duna, um oryx de longos cornos observava-os, imóvel.
Se Piankhi tivesse tido necessidade de uma nascente de água, bastar-lhe-ia
segui-lo. Esperam-me na capital, Valoroso, e os que me desejam ver são-me
hostis. Se perder tudo, dois seres seguir-me-ão até ao fundo do abismo: a minha
esposa e tu. Não sou o mais feliz dos homens? O cavalo apontou o focinho para
Napata e lançou-se num veloz galope. Tal como o seu senhor, não receava a prova».
In Christian Jacq, O Faraó Negro, 1997, Bertrand Editora, 1998, ISBN
978-972-251-049-3.
Cortesia
de BertrandE/JDACT