Cortesia
de wikipedia e jdact
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«(…) Tentou
comportar-se como a cortesã experimentada determinada a conduzir o jogo de uma
certa maneira. Já acabastes o vosso vinho, disse, fazendo menção de pegar na
garrafa de vidro e na taça. Deixai que vos sirva mais um pouco. Carradas dele. Ele
lançou-lhe um olhar que dizia que seria à maneira dela, mas não durante muito
mais tempo. Regressou para o almofadão e deitou-se. Ela virou-se a tempo de ver
a taça nos lábios dele. Tentou impôr controlo ao sangue desassossegado das suas
veias. Agora falamos, disse ela com firmeza. Acabai o vosso vinho e dizei-me
como viestes aqui parar. Sou eu que falo? Sois vós a treinada na arte da
conversação. Sou treinada para ouvir. Os homens gostam de falar deles próprios,
e nós ouvimos. Eu não tenho prazer em falar de mim. Falai vós. Eu? Sobre o quê?
Podeis falar sobre mim. Podeis dizer-me como sou belo e admirar o meu rosto e o
meu corpo. As mulheres fazem sempre isso.
Fazem-no, deveras? Que
conveniente ele vir recordar-lhe a sua presunção precisamente quando precisava
de ajuda para não gostar dele. Se este garanhão enfatuado esperava vê-la a
suspirar pela beleza dele, ele que pensasse outra vez… Ela suspirou, de facto,
mas pela inutilidade do rancor que sentia. O vinho devia fazer efeito muito em
breve. Deus sabia que ele tinha bebido que chegasse. Com um esgar, virou-se
para ele. Os olhos dele aparentavam estar fechados. Ele pegou na mão dela e
pousou-a no peito dele, o que fez com que ela se aproximasse um pouco, e ela
reparou que as pálpebras dele estavam um tudo-nada abertas e que ele a
observava. Não, ela talvez não se importasse minimamente de o matar depois
desta humilhação. Ela pôs um sorriso no rosto e começou a traçar com os dedos
as linhas dos ombros e dos músculos do peito dele. Dava voltas à cabeça à
procura de frases apropriadas. Sem dúvida que sois um homem muito bem-parecido.
Olhos muito belos e um sorriso encantador. E o vosso corpo é forte e atlético. Santo
Deus, as cortesãs e meretrizes mereciam decididamente cada centavo.
Adormece, seu idiota
presunçoso. Não é entroncado e peludo como alguns guerreiros. Do que gostais
mais? A voz dele parecia sonolenta e arrastada. Hã…, bem, estas concavidades ao
longo da vossa clavícula são muito atractivas. A mão dele ergueu-se, lânguida,
e envolveu-se no cabelo dela. Puxou-a delicadamente, encaminhando-lhe a cabeça
para baixo. Então beijai-as, senhora. E depois, tudo o resto. Não está o maior
talento de uma cortesã na sua boca? Ela apercebeu-se de que o seu rosto estava
a centímetros do dele e daqueles olhos ardentes que a olhavam por entre as
pálpebras semicerradas. Os seios dela pairavam mesmo acima dele, roçando-o ao
de leve, e sentia um formigueiro no seu corpo ridículo, traiçoeiro.
Contrariada, dobrou o pescoço e encostou os lábios à concavidade acima da
clavícula dele. Pele. Calor. Aquele cheiro masculino inebriante. Uma mão doce,
mas dominadora na sua cabeça encaminhava-a mais para baixo, para o peito. Adormece,
maldito sejas. Ela beijou-lhe o peito e tentou não prestar atenção à espantosa
e assustadora intimidade que tal acção evocava. Ele era o inimigo, um estranho,
e ela odiava-o, mas algo dentro dela ignorava isto.
Ele conduziu-a mais
para baixo, para o tronco, e barriga… De repente, a mão que tinha na cabeça
ficou mole. Ela susteve a respiração e aguardou pela imobilidade absoluta que
indicava que ele dormia. Cuidadosa, esgueirou-se para longe do corpo dele. O
braço dele caiu, lasso, ao lado do corpo. Puxou para si o cesto e despejou o
resto das empadas. Afastou o pano mal cosido que compunha um fundo falso e
cravou os olhos no punhal de aço escondido por baixo dele. Por Alice e as
outras mulheres. Sim, até por Margery. Por Reginald, e até mesmo por Thomas. Pegou
no punhal. Olhou com pena para o belo homem ali deitado como uma vítima
sacrificial sob o efeito de drogas. Pareceu-lhe indefeso, assim de repente, a
dormir como uma criança e, subitamente, ela imaginou-o como tal, fresco e
inocente. Sentiu um aperto no coração, que se revoltava contra o rumo que ela
havia traçado para si própria. Ergueu o punhal, agarrando-o com ambas as mãos,
a ponta letal apontada ao coração dele. Os braços dela tremiam, o corpo dela
tremia, a própria lâmina oscilava no ar. Ela tentou novamente encontrar coragem
no medo que sentia pelos amigos. Quando isto não resultou, virou-se para o medo
que sentia por si própria. Os olhares de suspeita e as acusações. A carta do
bispo. Os livros e plantas e poções. Deixara de ver o punhal, mas este surgiu,
de repente, à sua frente, muito real, muito afiado. Ela olhou para os nós dos
dedos cerrados à volta do cabo, depois para a ponta, e depois para o peito
sólido. Por fim, olhou de relance para o belo rosto.
Ele devolveu-lhe o olhar. Olhos negros reluziam perigosos por
baixo de copiosas pestanas. Sentiu-se tomada de pânico. Sabendo que agora seria
matar ou ser morta, ergueu-se nos joelhos e fez o punhal seguir o seu curso. Uns
braços fortes ergueram-se de rompante e uns dedos de ferro agarraram-lhe os
pulsos. Ele atirou-a para o lado e ela caiu. Na luta que se seguiu, a lâmina
tocou-lhe e um fio vermelho escorreu pelo braço dele. Ela deu por si deitada de
costas e imobilizada. O rosto que via à sua frente estava endurecido pela
fúria. Achastes mesmo que eu seria um Holofernes para a vossa Judite?, rosnou
ele. Era esse o plano, não era? Como nos evangelhos bíblicos. Matais o general
e o exército sem líder dispersa em confusão». In Madeline Hunter, Mil Noites de
Paixão, Edições ASA, 2012, ISBN-978-989-231-672-7.
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EASA/JDACT