segunda-feira, 25 de março de 2019

Redescobrir Manuel da Fonseca. Paula Graça Rodrigues. «Após ter conhecido um enorme êxito em Espanha, o romance picaresco expandiu-se por toda a Europa através de traduções…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Com a devida vénia à dra Paula Rodrigues

Resumo
«O principal objectivo desta dissertação é aprofundar o conhecimento do romance Cerromaior, da autoria de Manuel da Fonseca, perceber a sua importância e significado no contexto histórico-literário do neorrealismo português, assim como evidenciar que o referido romance se enquadra nas características do subgénero literário romance de formação. Demonstra-se que, para além de se tratar de um romance que se enquadra nos pressupostos da ficção neorrealista tradicional, Cerromaior já traz também uma perspectiva mais aberta do próprio conceito de realismo, o que lhe permite dialogar com a tradição modernista (sobretudo na valorização de aspectos estéticos), sem trair o compromisso social, ético e político, essencial ao neorrealismo dos anos 40. Voltado para a problematização de aspectos psicológicos, Cerromaior, ao centrar-se numa personagem em evolução que vai desafiando a narrativa conforme a sua tomada de consciência, pode ser considerado como romance de formação. A nível estrutural, esta dissertação é constituída por três capítulos. No primeiro capítulo, apresenta-se a fundamentação teórica do romance de formação/bildungsroman, a sua origem, evolução e caracterização. No segundo capítulo, estabelecendo a relação entre a obra de Manuel da Fonseca e o seu contexto histórico-literário, apresenta-se as principais coordenadas estéticas e ideológicas do neorrealismo português, enquadrando Cerromaior como romance de formação. No último capítulo, faz-se uma análise estrutural de Cerromaior dialogando com a perspectiva lukacsiana sobre o romance de formação. São destacados ainda os aspectos histórico e social, a representação da sociedade rural no universo da narrativa, tendo em conta os valores, atitudes e comportamentos das personagens e a sua influência no percurso formativo/de aprendizagem do herói».

Romance de formção / bildungsroman: campo conceptual
Origem e evolução do conceito
«Desde os horizontes da literatura picaresca até ao bildungsroman, o romance de formação é herdeiro de uma longa filiação de textos narrativos. Como tal, é importante determo-nos um pouco na evolução deste subgénero literário, de modo a compreender os elementos fundadores da obra que será objecto do nosso estudo. Tal como as noções de romance de educação ou romance de aprendizagem, a noção de romance de formação é de emprego relativamente recente na pena dos críticos de obras literárias, surgindo estas noções pela primeira vez no século XVIII. É importante referir que estes géneros romanescos só passaram a ser utilizados a partir do século XIX e entraram em uso corrente a partir de 1945. Explorando a plurissignificação do conceito, podemos dizer, por exemplo, que um exame atento do léxico francês apresenta as três noções utilizadas como sinónimos. A nível diacrónico, no decurso do século XVI surge em Espanha o romance picaresco, caracterizado, inicialmente, pela presença da personagem de um jovem que narra na primeira pessoa as aventuras de uma vida airada, que se desenrolam muitas vezes em façanhas nada abonatórias. Reforçando o lado transgressor do herói do romance picaresco, ao longo da narrativa multiplicam-se encontros e farras de uma personagem destituída de estatuto social, geralmente um mendigo, cuja pobreza impede de se fixar num lugar ou numa sociedade definida. Deste modo, como observam os especialistas deste subgénero, o romance picaresco aparece marcado pela mesma instabilidade da personagem da qual narra múltiplas aventuras. Após ter conhecido um enorme êxito em Espanha, o romance picaresco expandiu-se por toda a Europa através de traduções, de imitações, ou actualizações paródicas. Deste modo, numerosos romances de formação reivindicam uma filiação picaresca.
Contudo, estabelecendo as diferenças entre os subgéneros já citados, enquanto a personagem pícara experimenta uma série de aventuras, de encontros, de mudanças de estado ou de destino sem a preocupação de reflectir sobre o que lhe está a acontecer, o herói do romance de formação, por sua vez, é marcado pelo espírito reflexivo. Esforça-se por gerir o seu destino e está dotado de capacidade de análise psicológica que falta à personagem pícara. Assim, o romance de formação, contrariamente ao picaresco, introduz, por vezes, pausas narrativas (redacção de uma carta, exames de consciência, etc.), ao longo das quais a personagem reflecte sobre o modo como deve ou pode comportar-se. Tal como o pícaro, o herói do romance de formação também é um homem jovem que, preso à tutela da sua família, percorre o mundo e a sociedade ao sabor de numerosas aventuras. Da tradição picaresca, este subgénero actualiza, portanto, uma temática de viagem e, sobretudo, as características de uma personagem socialmente móvel, dotada de grande profundidade psicológica, qualidade que, como já foi sublinhado, falta ao pícaro da tradição espanhola. Quem pela primeira vez utiliza a designação de romance de formação ou Bildungsroman são os críticos que fazem da literatura alemã o seu domínio de estudo privilegiado e servem-se do conceito para designar obras germânicas como Les années d’apprentissage de Wilhelm Meister, de Goethe, Heinrich d’Ofterdingen, de Novalis, Henri le vert, de Keller.
A primeira dificuldade com que se confrontam os estudiosos do romance de formação é, precisamente, a questão da sua origem. De facto, apesar de surgirem, como já referimos, no início do século XVIII as primeiras referências ao termo, este subgénero só se afirmará no século XIX, com a já citada obra Wilhelm Meister, de Goethe, vista por muitos críticos como o seu modelo regenerador. É o caso de Morgenstern que, em 1820, caracteriza o Bildungsroman como um subgénero romanesco ocidental. Segundo ele, a ideia central de Bildung (formação, criação) retoma e seculariza a ideia de criação divina aplicando-a ao homem: formar-se e educar-se em contacto com a realidade é, no século XVIII, o dever essencial do indivíduo, levado a expandir as suas potencialidades à luz da sua razão visando, sobretudo, uma perfeita harmonia entre a sua alma e o seu corpo». In Paula da Graça Rodrigues, Redescobrir Manuel da Fonseca, Cerromaior como Romance de Formação, Dissertação apresentada à Universidade Autónoma de Lisboa, Departamento de Línguas e Literaturas Modernas, Tradução e Interpretação, para a obtenção do grau de Mestre em Estudos Portugueses, Lisboa, 2012.

Cortesia de UAdeLisboa/JDACT