Cortesia
de wikipedia e jdact
Com a devida vénia
à dra Paula Rodrigues
Resumo
«O
principal objectivo desta dissertação é aprofundar o conhecimento do romance Cerromaior, da autoria de Manuel
da Fonseca, perceber a sua importância e significado no contexto
histórico-literário do neorrealismo português, assim como evidenciar que o
referido romance se enquadra nas características do subgénero literário romance
de formação. Demonstra-se que, para além de se tratar de um romance que se
enquadra nos pressupostos da ficção neorrealista tradicional, Cerromaior já traz também
uma perspectiva mais aberta do próprio conceito de realismo, o que lhe permite
dialogar com a tradição modernista (sobretudo na valorização de aspectos
estéticos), sem trair o compromisso social, ético e político, essencial ao
neorrealismo dos anos 40. Voltado para a problematização de aspectos
psicológicos, Cerromaior,
ao centrar-se numa personagem em evolução que vai desafiando a narrativa
conforme a sua tomada de consciência, pode ser considerado como romance de
formação. A nível estrutural, esta dissertação é constituída por três
capítulos. No primeiro capítulo, apresenta-se a fundamentação teórica do
romance de formação/bildungsroman,
a sua origem, evolução e caracterização. No segundo capítulo, estabelecendo a
relação entre a obra de Manuel da Fonseca e o seu contexto histórico-literário,
apresenta-se as principais coordenadas estéticas e ideológicas do neorrealismo
português, enquadrando Cerromaior
como romance de formação. No último capítulo, faz-se uma análise estrutural
de Cerromaior dialogando
com a perspectiva lukacsiana sobre o romance de formação. São destacados
ainda os aspectos histórico e social, a representação da sociedade rural no
universo da narrativa, tendo em conta os valores, atitudes e comportamentos das
personagens e a sua influência no percurso formativo/de aprendizagem do herói».
Romance de formção / bildungsroman: campo conceptual
Origem e evolução do
conceito
«Desde
os horizontes da literatura picaresca até ao bildungsroman, o romance de formação é herdeiro de uma longa
filiação de textos narrativos. Como tal, é importante determo-nos um pouco na
evolução deste subgénero literário, de modo a compreender os elementos
fundadores da obra que será objecto do nosso estudo. Tal como as noções de
romance de educação ou romance de aprendizagem, a noção de romance de formação
é de emprego relativamente recente na pena dos críticos de obras literárias,
surgindo estas noções pela primeira vez no século XVIII. É importante referir
que estes géneros romanescos só passaram a ser utilizados a partir do século
XIX e entraram em uso corrente a partir de 1945. Explorando a
plurissignificação do conceito, podemos dizer, por exemplo, que um exame atento
do léxico francês apresenta as três noções utilizadas como sinónimos. A nível
diacrónico, no decurso do século XVI surge em Espanha o romance picaresco,
caracterizado, inicialmente, pela presença da personagem de um jovem que narra
na primeira pessoa as aventuras de uma vida airada, que se desenrolam muitas
vezes em façanhas nada abonatórias. Reforçando o lado transgressor do herói do
romance picaresco, ao longo da narrativa multiplicam-se encontros e farras de
uma personagem destituída de estatuto social, geralmente um mendigo, cuja
pobreza impede de se fixar num lugar ou numa sociedade definida. Deste modo,
como observam os especialistas deste subgénero, o romance picaresco aparece
marcado pela mesma instabilidade da personagem da qual narra múltiplas
aventuras. Após ter conhecido um enorme êxito em Espanha, o romance picaresco
expandiu-se por toda a Europa através de traduções, de imitações, ou actualizações
paródicas. Deste modo, numerosos romances de formação reivindicam uma filiação
picaresca.
Contudo, estabelecendo as diferenças entre os subgéneros já
citados, enquanto a personagem pícara experimenta uma série de aventuras, de
encontros, de mudanças de estado ou de destino sem a preocupação de reflectir
sobre o que lhe está a acontecer, o herói do romance de formação, por sua vez,
é marcado pelo espírito reflexivo. Esforça-se por gerir o seu destino e está
dotado de capacidade de análise psicológica que falta à personagem pícara.
Assim, o romance de formação, contrariamente ao picaresco, introduz, por vezes,
pausas narrativas (redacção de uma carta, exames de consciência, etc.), ao
longo das quais a personagem reflecte sobre o modo como deve ou pode
comportar-se. Tal como o pícaro, o herói do romance de formação também é
um homem jovem que, preso à tutela da sua família, percorre o mundo e a
sociedade ao sabor de numerosas aventuras. Da tradição picaresca, este subgénero
actualiza, portanto, uma temática de viagem e, sobretudo, as características de
uma personagem socialmente móvel, dotada de grande profundidade psicológica,
qualidade que, como já foi sublinhado, falta ao pícaro da tradição espanhola. Quem
pela primeira vez utiliza a designação de romance de formação ou Bildungsroman são os
críticos que fazem da literatura alemã o seu domínio de estudo privilegiado e
servem-se do conceito para designar obras germânicas como Les années d’apprentissage de Wilhelm Meister,
de Goethe, Heinrich d’Ofterdingen,
de Novalis, Henri le vert,
de Keller.
A
primeira dificuldade com que se confrontam os estudiosos do romance de formação
é, precisamente, a questão da sua origem. De facto, apesar de surgirem, como já
referimos, no início do século XVIII as primeiras referências ao termo, este
subgénero só se afirmará no século XIX, com a já citada obra Wilhelm Meister, de Goethe, vista
por muitos críticos como o seu modelo regenerador. É o caso de Morgenstern que,
em 1820, caracteriza o Bildungsroman
como um subgénero romanesco ocidental. Segundo ele, a ideia central de Bildung (formação,
criação) retoma e seculariza a ideia de criação divina aplicando-a ao homem:
formar-se e educar-se em contacto com a realidade é, no século XVIII, o dever
essencial do indivíduo, levado a expandir as suas potencialidades à luz da sua
razão visando, sobretudo, uma perfeita harmonia entre a sua alma e o seu corpo».
In
Paula da Graça Rodrigues, Redescobrir Manuel da Fonseca, Cerromaior como Romance
de Formação, Dissertação apresentada à Universidade Autónoma de Lisboa,
Departamento de Línguas e Literaturas Modernas, Tradução e Interpretação, para
a obtenção do grau de Mestre em Estudos Portugueses, Lisboa, 2012.
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