domingo, 31 de março de 2019

No 31. Rosa Brava. José Manuel Saraiva. «Foi, portanto, com um sentimento de enorme alegria que Leonor recebeu aquele bendito anúncio, sobretudo pela perspectiva de uma alteração, embora breve, do curso regular do seu calendário, monótono e triste»

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«(…) Num frémito de emoção e de descontrolo, a velha ajoelhou-se de seguida no chão, ergueu os olhos e as mãos aos céus e bradou: perdoai-lhe, meu Deus Nosso Senhor que estais no Céu, e não queirais ouvir o que esta minha adorada dama Vos disse agora, levada com toda a certeza por algum espírito maligno trazido para aqui pelo seu danado esposo. Perdoai-lhe, Deus Nosso Senhor, e não a deixeis cair em tentações satânicas... De bruços sobre a cama e com o rosto escondido na palma das mãos, a dama começou a chorar já então arrependida, não só de ultrajar a Deus mas também com o receio de vir a sofrer pesados castigos por tanto ter pecado naquela hora exasperante. Emocionalmente devastada, exausta de dor e de pranto, a senhora do morgado acabou por adormecer sob a cuidada vigilância de Briolanja Mendes.
Nas duas semanas seguintes Leonor Teles e João Lourenço raramente se viram e se relacionaram. Ela passava a maior parte do tempo nos aposentos e no leito; ele consumia-o nas caçadas e diversões. Numa manhã, estava a jovem sentada na cozinha em frente à lareira, chegou o marido com a notícia de que João Afonso Telo mandara dizer que era sua intenção deslocar-se a Pombeiro para uma visita de cortesia, no último dia do mês. E que levaria consigo um grupo de amigos. Radiante com a novidade, quanto mais não fosse pela circunstância de rever o tio e de conhecer pessoas diferentes das habituais, Leonor prontificou-se imediatamente a organizar a ementa e a dirigir a recepção. Porém, até ao dia aprazado, o último de Novembro, o quotidiano de ambos não se alterou, como também nunca se recompôs a relação entre o casal. O matrimónio era recente, sem dúvida, mas as suas vidas já se tinham autonomizado. Ela continuava a dormir, a chorar e a rezar; ele persistia na caça, nas diversões e na ida às put… Foi, portanto, com um sentimento de enorme alegria que Leonor recebeu aquele bendito anúncio, sobretudo pela perspectiva de uma alteração, embora breve, do curso regular do seu calendário, monótono e triste.
Tamanho o entusiasmo dela que logo ali e naquele momento se manifestou empenhada na concepção de uma farta ementa, destinando para o jantar desse dia carne de vaca picada com cebola, cravo, açafrão, pimenta e gengibre, regada abundantemente com azeite e vinagre; fatias de galinha temperadas com salsa, coentros, hortelã, canela e um número considerável de ovos cozidos e escalfados; coelho assado com cebola pisada, vinagre, cravo, pimenta e muita gordura; e lampreia cozida, temperada com quase todos os condimentos utilizados nas anteriores iguarias. E porque ninguém melhor do que ela sabia dos gostos do tio, mandaria confeccionar, para o fim de tudo, a guloseima que ele mais apreciava: tigelada de arroz cozido com muitas gemas de ovos e queijo fresco. Vinho palhete de Azóia, que os apreciadores comparavam aos vinhos gregos de malvasia e que já era conhecido em Inglaterra, nos Países Baixos e em todo o mundo hanseático, haveria de servir de rega à poderosa ementa.
Como estava previsto, a meio da manhã de 30 de Novembro chegava ao morgado de Pombeiro João Afonso Telo com um familiar e oito amigos: o sobrinho Gonçalo Teles Menezes, irmão de Leonor, o arcebispo de Viseu, os alcaides de Castelo Rodrigo e da Covilhã, um fidalgo de São Pedro do Sul, um infanção de Montemor-o-Velho, um médico do Porto, um juiz e um lente da Faculdade de Direito Civil, de Coimbra. Cumprida a recepção de boas-vindas, sem quaisquer formalidades, os convidados passaram imediatamente à sala comum para descansar um pouco e, de seguida, se servirem das viandas postas à disposição de todos sobre a mesa de pinho que em espaço ocupava um quinto da divisão. O conde de Barcelos foi o primeiro a servir-se, como haveria de ser o último a acabar já o sol se tinha posto. A dado instante da conversa e ao correr do prândio, João Afonso Telo virou-se para a sobrinha e perguntou: então quando é que vamos ter a alegria de nos dares um descendente? A jovem passou disfarçadamente a ponta dos dedos pelos lábios, sorriu com indisfarçável nervosismo e mentiu: não sei para quando será, estimado tio, para já nada indica que venha a caminho...» In José Manuel Saraiva, Rosa Brava, Oficina do Livro, 2005, ISBN 978-989-555-113-2.
                                                                                                              
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