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Sábado
à noite
«Tudo
começou com um beijo casual dado no vestíbulo que levava ao quarto. O que aconteceu
a seguir durou uma semana, Mas pareceu um ano. Foi um inferno. Quando tinham
comprado aquele bongalow em
Ridgewood Lane , havia já seis anos, Philip Fleming gostava
muito de tomar o pequeno-almoço e o almoço na cozinha. A vista que se abria
diante das grandes janelas, em frente da mesa, era incomparável. Haviam já
passado muitos anos, quando, durante a lua-de-mel, ele e Helen tinham feito, de
automóvel, o percurso de Paris a Roma, contornando as montanhas, acima das
nuvens, vira, entre Rapallo e Spezia, o que então julgara ser a vista mais
esfuziante do Mundo. Mas quando se tinham mudado para Ridgewood Lane,
apercebeu-se de que só um snob apegado aos nomes prestigiosos poderia afirmar
que a grande massa de edifícios alabastrinos minúsculos ao sol, que se
estendiam de West Hollywood até Los Angeles, era menos bela. Mas isso fora seis
anos antes. Desde então, Philip deixara de olhar conscientemente pela janela e
de se extasiar perante aquela paisagem que era sua. Mas hoje tinha consciência
dela. Apercebia-se de que, cada vez mais, ia vendo e gozando cada vez menos.
Talvez porque agora estivesse a olhar, com frequência cada vez maior, para
dentro de si. Era uma tarde vazia de sexta-feira, bastante cedo ainda, e estava
sentado à mesa da cozinha, perto da grande janela, a comer o almoço que ele
mesmo preparara e a ler distraidamente uma biografia de Ruskin. Gostava de
estar só. Assim ninguém exigia nada de si. Logo que entrava em casa uma
criança, o isolamento tornava-se raro. Mas Danny estava a brincar em casa dos
Cochran, mais para o fundo do quarteirão. Helen estava no cabeleireiro. E ainda
tinha mais quinze minutos para estar só.
Prometera
a Bill Markson ser pontual. Bill era franzino, calvo, instável como um
catavento, e sofria do fetiche do tempo. Bill considerava o tempo como algo de
pessoal e muito seu, e se uma pessoa não respeitava as horas, se não chegava a
tempo, isso só podia significar que não se importava com ele, que não gostava
dele. Mas a verdade é que gostava mesmo muito de Bill. Principalmente porque
Bill gostava dele, era uma companhia agradável, e as suas anedotas eram tão
intermináveis que não era preciso ouvi-las com muita atenção. Quando na manhã
desse dia Bill telefonara a convidá-lo para irem às corridas de cavalos,
aceitara com alacridade. Estava ainda na fase de descontracção do seu último
trabalho para os estúdios e não sentia grande vontade de trabalhar. Confrontado
com uma máquina de escrever num dia de semana, sem encomendas e sem directivas,
teria de se enfrentar a si mesmo. E não estava com disposição para tal. A
verdade é que já estava arrependido de ter aceitado o convite. O longo percurso
até ao hipódromo, numa bicha interminável de carros, era cansativo, e a longa
espera entre corridas era muito maçadora. Nas corridas, aquilo de que mais
gostava era o momento excitante em que os animais arrancavam do gradeamento de
partida e o súbito entusiasmo dos animais esforçando-se por passar em boa
posição na primeira curva. Noutros tempos, gostava também da excitação das
apostas. Agradava-lhe o aspecto Klondike de tudo aquilo: a possibilidade de
ficar rico assim de repente, num grande bolo, e de satisfazer todas as suas
fantasias. Mas, como era demasiado conservador para apostar grandes quantias
com probabilidades duvidosas, a promessa excitante ficava em nada. Acabava por
não valer o frete das esperas intermináveis. Deu uma olhadela ao relógio. Cinco
minutos. Acabou rapidamente o café, meteu uma marca entre as páginas de Ruskin
e dirigiu-se ao quarto para ir buscar um casaco. Do guarda-fato podia ver um
pedaço do relvado da frente, rodeado por uma sebe baixa e sombreado pela
folhagem do ulmeiro chinês, e o grande cartaz pregado junto à parte de tijolo: para
venda. não incomode os ocupantes. dirija-se à Agência Burdock. Aquele
cartaz irritava-o ligeiramente e, lá bem no fundo de si próprio, encolerizava-o
contra Helen. A grande casa nova em Windsor, The Briars, fora ideia dela. Ela
tinha a certeza de que não lhes havia de ser difícil vender aquela. Para maior
segurança, tinham comprado a casa de Windsor fazendo uma hipoteca a longo
prazo, mas a verdade é que já lá iam quatro meses e ainda não tinham vendido a
casa e em breve teriam de se mudar para a nova e pagar um depósito bastante
pesado. Ficar sobrecarregado com as despesas de duas casas obrigá-lo-ia a
recorrer ao banco e essa ideia desagradava-lhe profundamente. E desagradava-lhe
ainda mais a rejeição diária daquela casa que tão perfeitamente reflectia o seu
gosto, as suas coisas.
Enfiou
o casaco, pegou na carteira e nas chaves que estavam em cima da
mesa-de-cabeceira e dirigiu-se apressadamente para a porta. Já tinha a mão no
puxador quando o telefone tocou. Se respondesse, poderia atrasar-se e ter de
enfrentar a agitada censura de Bill. Se não atendesse, ficaria toda a tarde
preocupado a magicar quem lhe teria querido falar. Levantou o auscultador. Está
lá! É o Sr. Fleming? A voz, na outra extremidade da linha, parecia a de um
passarinho. - Aqui sra Burdock, da agência. Como está? Estou com pressa. A voz
baixou de tom. Oh! Espero que não vá sair. A sra Fleming está? Estou sozinho em
casa». In Irving Wallace, Pecados Conjugais, 1996, Livros do Brasil, Colecção
dois Mundos, 1996, ISBN 978-972-381-578-8.
Cortesia
de LdoBrasil/CdoisMundos/JDACT