quarta-feira, 6 de março de 2019

Pecados Conjugais. Irving Wallace. «E desagradava-lhe ainda mais a rejeição diária daquela casa que tão perfeitamente reflectia o seu gosto, as suas coisas»

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Sábado à noite
«Tudo começou com um beijo casual dado no vestíbulo que levava ao quarto. O que aconteceu a seguir durou uma semana, Mas pareceu um ano. Foi um inferno. Quando tinham comprado aquele bongalow em Ridgewood Lane, havia já seis anos, Philip Fleming gostava muito de tomar o pequeno-almoço e o almoço na cozinha. A vista que se abria diante das grandes janelas, em frente da mesa, era incomparável. Haviam já passado muitos anos, quando, durante a lua-de-mel, ele e Helen tinham feito, de automóvel, o percurso de Paris a Roma, contornando as montanhas, acima das nuvens, vira, entre Rapallo e Spezia, o que então julgara ser a vista mais esfuziante do Mundo. Mas quando se tinham mudado para Ridgewood Lane, apercebeu-se de que só um snob apegado aos nomes prestigiosos poderia afirmar que a grande massa de edifícios alabastrinos minúsculos ao sol, que se estendiam de West Hollywood até Los Angeles, era menos bela. Mas isso fora seis anos antes. Desde então, Philip deixara de olhar conscientemente pela janela e de se extasiar perante aquela paisagem que era sua. Mas hoje tinha consciência dela. Apercebia-se de que, cada vez mais, ia vendo e gozando cada vez menos. Talvez porque agora estivesse a olhar, com frequência cada vez maior, para dentro de si. Era uma tarde vazia de sexta-feira, bastante cedo ainda, e estava sentado à mesa da cozinha, perto da grande janela, a comer o almoço que ele mesmo preparara e a ler distraidamente uma biografia de Ruskin. Gostava de estar só. Assim ninguém exigia nada de si. Logo que entrava em casa uma criança, o isolamento tornava-se raro. Mas Danny estava a brincar em casa dos Cochran, mais para o fundo do quarteirão. Helen estava no cabeleireiro. E ainda tinha mais quinze minutos para estar só.
Prometera a Bill Markson ser pontual. Bill era franzino, calvo, instável como um catavento, e sofria do fetiche do tempo. Bill considerava o tempo como algo de pessoal e muito seu, e se uma pessoa não respeitava as horas, se não chegava a tempo, isso só podia significar que não se importava com ele, que não gostava dele. Mas a verdade é que gostava mesmo muito de Bill. Principalmente porque Bill gostava dele, era uma companhia agradável, e as suas anedotas eram tão intermináveis que não era preciso ouvi-las com muita atenção. Quando na manhã desse dia Bill telefonara a convidá-lo para irem às corridas de cavalos, aceitara com alacridade. Estava ainda na fase de descontracção do seu último trabalho para os estúdios e não sentia grande vontade de trabalhar. Confrontado com uma máquina de escrever num dia de semana, sem encomendas e sem directivas, teria de se enfrentar a si mesmo. E não estava com disposição para tal. A verdade é que já estava arrependido de ter aceitado o convite. O longo percurso até ao hipódromo, numa bicha interminável de carros, era cansativo, e a longa espera entre corridas era muito maçadora. Nas corridas, aquilo de que mais gostava era o momento excitante em que os animais arrancavam do gradeamento de partida e o súbito entusiasmo dos animais esforçando-se por passar em boa posição na primeira curva. Noutros tempos, gostava também da excitação das apostas. Agradava-lhe o aspecto Klondike de tudo aquilo: a possibilidade de ficar rico assim de repente, num grande bolo, e de satisfazer todas as suas fantasias. Mas, como era demasiado conservador para apostar grandes quantias com probabilidades duvidosas, a promessa excitante ficava em nada. Acabava por não valer o frete das esperas intermináveis. Deu uma olhadela ao relógio. Cinco minutos. Acabou rapidamente o café, meteu uma marca entre as páginas de Ruskin e dirigiu-se ao quarto para ir buscar um casaco. Do guarda-fato podia ver um pedaço do relvado da frente, rodeado por uma sebe baixa e sombreado pela folhagem do ulmeiro chinês, e o grande cartaz pregado junto à parte de tijolo: para venda. não incomode os ocupantes. dirija-se à Agência Burdock. Aquele cartaz irritava-o ligeiramente e, lá bem no fundo de si próprio, encolerizava-o contra Helen. A grande casa nova em Windsor, The Briars, fora ideia dela. Ela tinha a certeza de que não lhes havia de ser difícil vender aquela. Para maior segurança, tinham comprado a casa de Windsor fazendo uma hipoteca a longo prazo, mas a verdade é que já lá iam quatro meses e ainda não tinham vendido a casa e em breve teriam de se mudar para a nova e pagar um depósito bastante pesado. Ficar sobrecarregado com as despesas de duas casas obrigá-lo-ia a recorrer ao banco e essa ideia desagradava-lhe profundamente. E desagradava-lhe ainda mais a rejeição diária daquela casa que tão perfeitamente reflectia o seu gosto, as suas coisas.
Enfiou o casaco, pegou na carteira e nas chaves que estavam em cima da mesa-de-cabeceira e dirigiu-se apressadamente para a porta. Já tinha a mão no puxador quando o telefone tocou. Se respondesse, poderia atrasar-se e ter de enfrentar a agitada censura de Bill. Se não atendesse, ficaria toda a tarde preocupado a magicar quem lhe teria querido falar. Levantou o auscultador. Está lá! É o Sr. Fleming? A voz, na outra extremidade da linha, parecia a de um passarinho. - Aqui sra Burdock, da agência. Como está? Estou com pressa. A voz baixou de tom. Oh! Espero que não vá sair. A sra Fleming está? Estou sozinho em casa». In Irving Wallace, Pecados Conjugais, 1996, Livros do Brasil, Colecção dois Mundos, 1996, ISBN 978-972-381-578-8.

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