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«(…) Durante alguns minutos uma e
outra ficaram em silêncio. A ama manteve-se na mesma posição, estática, de pé,
encostada à parede do quarto; por seu lado, Leonor Teles deixou-se cair de
costas para trás e, já deitada sobre a cama, confessou: o pior de tudo é que
julgo estar de barriga, porque me faltou a regra já lá vão cinco dias. Como
sabes, preciso apenas de mais algum tempo para me certificar se estou ou não
repleta. Se estiver, Briolanja, não tenho outro remédio senão parir a criança
que vier aí. Ao acabar a confissão com lágrimas no rosto, a nova senhora de
Pombeiro ordenou à ama que se fosse embora e a deixasse sozinha. Mas, quando Briolanja
transpunha já a porta, Leonor pediu: vê o que podes fazer por mim, boa amiga. Passou-se
uma semana, mas um dia, na intimidade de mais uma conversa, a bela esposa de
João Lourenço Cunha revelou à ama que tinha entrado num período de excepção. A
menorreia nunca mais tinha aparecido. O caso fora confidenciado a Briolanja
poucas horas antes da chegada intempestiva ao solar de um mensageiro de
Barcelos com uma carta de Maria Teles para a sua irmã Leonor Teles. Era uma
carta simples, breve, uma mensagem por via da qual Maria, já então viúva de
Álvaro Dias Souza, senhor de Mafra e da Ericeira, lhe anunciava que ia partir
para Lisboa. Logo que recebeu a carta, a destinatária abriu-a à pressa e leu:
Minha
dilecta irmã,
Senhora
dona Leonor Teles Menezes e Senhora do Morgado de Pombeiro, Quero apenas
informar-te de que a rogo do nosso muitoestimado tio, senhor João Afonso Telo,
junto de Sua Alteza Real El-Rei Fernando I, partirei já no próximo domingo para
Lisboa, a fim de me instalar no Paço de São Martinho, como açafata da Infanta
dona Beatriz, irmã de Sua Alteza Real. Talvez a minha ida para Lisboa, ainda
por cima com o fim de servir na corte, ajude a superar a tristeza da minha
amarga viuvez. Espero que sejas feliz com o teu admirável e benquisto esposo,
que para isso muito pedirei a Deus Nosso Senhor e aos Santos milagreiros. Aceita,
minha adorada irmã, a estima e o amor da Maria Teles.
Quando acabou de ler em voz alta
a mensagem na presença da aia, Leonor, que se encontrava sentada numa cadeira
junto à janela dos seus aposentos, levantou-se de súbito, esmagou a carta entre
os dedos com toda a força e gritou descontrolada: ela vai para Lisboa rezar a
Deus e aos santos milagreiros pela minha felicidade e a do meu admirável e
benquisto esposo? Não acredito nisto, Briolanja, não acredito que a minha
estimada irmã, conhecendo a natureza do canalha com quem me casei, rogue por
mim a Deus e peça aos santos o favor de me salvarem. Não preciso disso, mulher,
dispenso rezas e favores de quem quer que seja, a quem quer que seja... Senhora,
acudiu a ama num grito sinistro, crispada de horror e medo ao ouvir tanta blasfémia.
A intenção de sua amada irmã é estimável. Ela diz isso apenas porque lhe quer
bem, e como a senhora sabe ninguém pede ajuda a Deus Nosso Senhor se não
estiver em conformidade com as suas divinas leis». In José Manuel Saraiva, Rosa
Brava, Oficina do Livro, 2005, ISBN 978-989-555-113-2.
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