terça-feira, 5 de março de 2019

A Favorita do Rei. Sandra Worth. «Que desgraça, que desgraça! Um catre em cima da palha em vez do meu lindo quarto na Torre para dar à luz o meu filho...»

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A filha do rei. 1470
«(…) Os três vultos moviam-se em círculo e entoavam um cântico. Cabisbaixos, pareciam contemplar a figura que haviam desenhado no chão. A cantilena ganhava ritmo e eles dançavam cada vez mais depressa. Gritavam:

As minhas imagens lançaram-te para o território dos mortos
As minhas imagens sepultaram-te num caixão com os mortos
As minhas imagens entregaram-te à destruição!

Os capuzes de dois vultos caíram. Eram mulheres: uma, de cabelos grisalhos; a outra, loura. Foram atrás do homem-burro, com as capas negras a esvoaçar, a gesticular num frenesim desvairado. Eu estava aterrada. Nem conseguia respirar. Elas eram bruxas e toda a gente sabia que as bruxas arrancavam o coração às pessoas e comiam-no. Deus da Noite, lança um feitiço que provoque consternação ao inimigo e lhe impregne os pensamentos! Um feitiço que provoque a destruição total! Espírito das Sepulturas, lembra-te! Dele é o tempo das trevas! O homem-burro levava um livro numa mão e aspergia água com a outra. Um dos vultos temíveis saiu das sombras. O fumo dissipou-se. Ela tinha a cara pintada de branco e sorria como uma louca. Continuava a girar. Continuava a sair das sombras e a dirigir-se para o círculo de luz. De repente, ficou emoldurada por um arco. A luz das tochas iluminou-lhe a cara. Fiquei espantada. A minha boca abriu-se para dar um grito que me chegou à garganta e ali ficou a tremer, mas não saiu nenhum som. A bruxa com a cara pintada de branco... Era a minha mãe.
Ninguém sabia o que eu tinha visto, porque Tom e Dick haviam dito à minha mãe que eu estava na retrete quando ela perguntou por mim. Pouco depois, no dia 2 de Novembro, a minha mãe agarrou-se à barriga, soltou um grito de dor e por pouco não caiu. A minha avó correu para ela. Anda, Bel..., disse a minha avó. Levou-a para o outro lado da cortina de seda branca que dividia a sala. Oh, que desgraça a minha!, soluçou a minha mãe atrás da cortina. Que desgraça, que desgraça! Um catre em cima da palha em vez do meu lindo quarto na Torre para dar à luz o meu filho... Como é possível? Como, mãe? Cala-te, filha. Se Eduardo vencer a batalha, não tardarás a voltar para a Torre. A culpa é..., dos... Neville, disse a minha mãe a arquejar. - Não me esquecerei. Não, não nos esqueceremos.
Se o irmão do Warwick..., não tivesse voltado..., para junto dele, nada disto teria acontecido... Eduardo ainda..., seria rei. Eu sei, filha. Eu sei. Maldito seja aquele animal..., aquele urso, o Warwick… O Fazedor de Reis, como ele chama..., a si próprio. Quando eu voltar para a Torre…, e for rainha outra vez, o Warwick será... quem dera que ele morresse! - Chiu!, disse a minha avó. Assim será. Não foi isso que o frade nos garantiu? Agora concentra-te em dar à luz essa criança. E faz com que seja um filho». In Sandra Worth, A Favorita do Rei, A Primeira rainha Tudor, 2008, tradução de Maria F. Duarte, Planeta Manuscrito, Lisboa, 2011, ISBN 978-989-657-165-8.

Cortesia de PlanetaM/JDACT