Cortesia
de wikipedia e jdact
O
Príncipe Estrangeiro
«(…) Hossam, disse um homem mais velho do que meus captores,
abrindo caminho e analisando com olhos sérios o meu estado lastimável. Ele me encarou de igual para igual, diferente dos
demais, sem se deixar cegar pela ansiedade. O que aconteceu? Nós a capturámos
nas montanhas. Hossam aproximou-se do homem. Tentou emboscar-nos quando
estávamos voltando da negociação pelas armas. Orgulhosos, dois dos homens que
nos acompanhavam soltaram as bagagens cheias de armas, como se quisessem
mostrar que eu não os havia impedido. Elas não tinham sido fabricadas em
Miraji. Eram de Amonpour. Pareciam ridículas, ornadas e esculpidas, feitas por
mãos em vez de máquinas, custando o dobro do preço porque alguém se tinha dado
ao trabalho de enfeitá-las. Não importava o quanto uma arma era bonita, ela te
mataria do mesmo jeito. Aprendi isso com Shazad. Só ela?, perguntou o homem de
olhos sérios. Sozinha? Seu olhar voltou-se para mim, como se pudesse extrair a
verdade. Como se uma garota de dezassete anos realmente pensasse que poderia
enfrentar e vencer meia dúzia de homens com nada além de um punhado de balas.
Como se a famosa Bandida de Olhos Azuis fosse idiota. Eu preferia imprudente. Mas
mantive a boca fechada. Quanto mais falasse, maior era a probabilidade de dizer
algo que se voltaria contra mim.
Fique em silêncio, faça cara
feia e tente
continuar
viva. Se tudo der errado, concentre-se na última parte.
Você é realmente a Bandida de Olhos Azuis? Ikar perguntou,
chamando a atenção de todos. Ele havia descido de seu posto de observação para
me olhar com cara de idiota junto aos demais. Inclinou a cabeça para a frente
por cima do cano da arma, ansioso. Se ela disparasse, arrancaria as suas mãos e
parte do seu rosto junto. É verdade o que dizem a seu respeito?
Fique em silêncio. Faça cara
feia. Tente continuar viva.
Depende do que dizem. Droga. Não resisti muito tempo. E você não deveria segurar a arma desse
jeito. Ikar ajeitou a arma distraído, sem desgrudar os olhos de mim. Dizem que
você consegue acertar na testa de um homem no escuro a quinze metros de
distância. Que atravessou uma saraivada de balas em Iliaz e saiu de lá com os
planos secretos de guerra do sultão. A minha lembrança dos eventos em Iliaz era
um pouco diferente. P’ra começo de conversa, eu tinha levado um tiro. E que
seduziu uma das esposas do emir de Jalaz enquanto elas visitavam Izman. Aquilo
era novidade. Já havia escutado uma versão na qual eu seduzia o próprio emir.
Talvez a esposa também gostasse de mulheres. Ou talvez a história tivesse
mudado no leva-e-trás, já que muitos boatos julgavam que eu era um homem. Eu já
não me vestia como garoto, mas aparentemente precisava ganhar mais algumas
curvas para convencer as pessoas de que era mulher. Matou uma centena de
soldados gallans em Fahali, prosseguiu Ikar. Suas palavras se atropelavam,
ignorando o meu silêncio. E ouvi que escapou de Malal nas costas de um roc azul
gigante depois de inundar uma casa de oração. Você não devia acreditar em tudo
o que escuta por aí, disse quando ele finalmente parou para respirar, os olhos
arregalados como dois louzis de tanto entusiasmo.
Ikar pareceu desapontado. Era apenas uma criança, ansioso para
acreditar em todas aquelas
histórias, assim como eu quando tinha a sua idade, embora parecesse mais novo do que eu jamais lembrava ter sido.
Ele não devia estar ali, segurando uma arma daquela
maneira. Mas era isso que o deserto fazia. Transformava as pessoas em
sonhadores armados. Passei a língua pelos dentes. E a casa de oração em Malal foi um acidente…, mais ou menos». In Alwyn Hamilton, A Traidora do Trono, A
Rebelde do Deserto 2, 2016/2017, Editora Seguinte, Companhia das Letras, ISBN
978-855-534-029-1.
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