sábado, 9 de março de 2019

O Pêndulo de Foucault. Umberto Eco. «Não era uma zona muito frequentada; como haveria de resistir horas a fio contemplando o mundo insípido que tinha às minhas costas? Mas se o periscópio estava ali…»

jdact e wikipedia

Keter
«(…) Entrei. Achei-me diante de uma lâmina de vidro, como uma prancha de comando, sobre a qual via moverem-se imagens de um filme, bastante desfocadas, a secção longitudinal de uma cidade. Logo ocorreu-me que a imagem era a projecção de outra tela, posta sobre a minha cabeça, onde aparecia invertida, e que esta segunda tela era a ocular de um periscópio primitivo, feito por assim dizer com dois caixotes engastados em ângulo obtuso, sendo que o mais longo protendia à maneira de tubo para o exterior da guarita, bem em cima de minha cabeça, apontando para as minhas costas, alcançando uma janela superior, da qual, certamente em virtude de um jogo interno de lentes que lhe permitia um grande ângulo de visão, captava as imagens externas. Calculando o percurso que havia feito ao subir, compreendi que o periscópio me permitia observar o exterior como se estivesse olhando a partir dos vitrais superiores da abside de Saint-Martin, como se olhasse suspenso do Pêndulo, a última visão de um enforcado. Adaptei melhor a pupila àquela imagem fosca: podia agora distinguir a rue Vaucanson, sobre a qual dava o coro, e a rue Conté, que perlongava idealmente a nave. A rue Conté desemboca na rue Montgolfier à esquerda e a rue de Turbigo à direita, com um bar em cada ângulo, o Week End e La Rotonde, havendo defronte uma fachada onde sobressaía um letreiro, que decifrei com dificuldade, Les Creations Jacsam. O periscópio. Não me pareceu óbvio que estivesse colocado na sala das vidrarias, pois lhe assentava melhor que figurasse no meio dos instrumentos ópticos, sinal de que era importante que a prospecção do exterior fosse apreciada naquele sítio, embora ainda não atinasse com a razão da escolha. Porque este cubículo, positivístico e verniano, junto ao chamariz emblemático do leão e da serpente?
Em todo caso, se tivesse força e coragem de permanecer ali ainda por alguns décimos de segundo, talvez o guardião não me pudesse ver.
Permaneci, submarino, por um tempo que pareceu longuíssimo. Ouvia os passos dos retardatários, dos últimos vigias. Fui tentado a anichar-me sob a prancha, para melhor fugir a alguma eventual olhadela ao acaso, mas me contive, pois permanecendo de pé, se alguém me houvesse visto, sempre poderia fingir que era um visitante absorto, que ali ficou a inebriar-se do prodígio. Logo depois, as luzes se apagaram e a sala ficou envolta na penumbra, a guarita se tornou menos escura, iluminada tenuemente pela tela que eu continuava a fitar como se representasse o meu último contacto com o mundo. A prudência pedia que eu permanecesse de pé, ou agachado, se os pés me doessem, pelo menos duas horas. A hora de encerramento para os visitantes não coincide com a de saída dos empregados. Surpreendeu-me o medo da limpeza: e se agora começassem a limpar todas as salas, palmo a palmo? Depois pensei, já que o museu abria tarde pela manhã, que decerto os serventes prefeririam trabalhar à luz do dia e não de noite. Assim devia ser, pelo menos nas salas superiores, pois não ouvia passar ninguém. Apenas alguns murmúrios distantes, algum rumor seco, talvez de portas que se fechavam. Devia manter-me firme. Teria tempo de alcançar a igreja entre as dez e as onze, ou mesmo mais tarde, pois os Senhores só haveriam de chegar por volta da meia-noite.
Naquele momento um grupo de jovens saía da Rotonde. Uma das moças foi seguindo pela rue Conté e virou para a rue Montgolfier. Não era uma zona muito frequentada; como haveria de resistir horas a fio contemplando o mundo insípido que tinha às minhas costas? Mas se o periscópio estava ali, não era para enviar-me mensagens de secreta importância? Senti vir-me a necessidade de urinar: precisava não pensar naquilo, considerá-lo um indício nervoso. Quantas coisas te vêm à mente quando estás sozinho, clandestino, em frente a um periscópio. Deve ser a mesma sensação de quem se esconde no escaler de um navio para emigrar em busca de um país distante. Com efeito, a meta final seria a estátua da Liberdade, com o diorama de New York. Poderia sobrevir-me a sonolência, pois que até fosse um bem. Não, porque talvez pudesse acordar tarde demais... O mais terrível teria sido uma crise de angústia: quando tens a certeza de que dali a instantes gritarás. Periscópio, submersível, bloqueado no fundo, talvez ao teu redor já naveguem grandes peixes negros dos abismos, e não os vês, e sabes apenas que te falta o ar. Respirei profundamente várias vezes. Concentração. A única coisa que nestes momentos não te trai é o rol da lavadeira. Voltar ao terra-a-terra, agendar os factos, individualizar as causas, os efeitos. Cheguei a este ponto por isto, e por um outro motivo a... Sobrevieram-me lembranças, nítidas, precisas, ordenadas. As lembranças dos frenéticos três últimos dias depois dos dois últimos anos, confundidos com recordações de quarenta anos antes, como as encontrei violentando o cérebro eletrónico de Jacopo Belbo». In Umberto Eco, O Pêndulo de Foucault, 1988, tradução de José Barreiros, Sicidea (Difel), 2008, ISBN 978-846-125-726-3.
                    
Cortesia de Sicidea/Difel/JDACT