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«(…) Estes cristãos arabizados explicaram aos flamengos e
alemães que aquele bairro se chamava al-hammã, por estar aninhado na
reentrância que as muralhas formavam entre a Porta do Almocavar e a Porta de
al-hammã, já mais perto do rio, protegida por uma torre albarrã. Al-hammã era o
nome árabe para termas e os banhos públicos de Lusbuna situavam-se naquela zona
ribeirinha intramuros. Nas suas imediações, existia um pequeno bairro habitado
por mercadores ricos, ali se situavam as lojas dos prateiros e ourives, das
sedas e brocados. Konrad perguntava-se se era isso que parecia estar à sua
espera em Lusbuna: as riquezas que os mercadores de al-hammã escondiam... Resolveu
não abusar mais da sua sorte e regressar ao acampamento, situado no monte a
oriente da cidade, o que lhes permitia vigiar, não só as Portas do Almocavar e
de al-hammã, mas também a ribeira oriental. Também os portugueses tinham
escolhido uma boa colina, que possuía ainda a vantagem de estar rodeada por duas ribeiras, uma defesa
natural. Os ingleses e franceses, a ocidente, do outro lado do esteiro,
controlavam a Porta da Alfofa, nome que os cristãos davam à báb al-khawkha, e a
do Ferro, a grande Porta ocidental, assim chamada por dar acesso às ferrarias
do bairro de Alcamim, além de ser chapeada em ferro. Lusbuna abria-se no
entanto, e sobretudo, para o Tejo, que durante a maré-alta chegava mesmo a
bater nas muralhas. A ribeira oriental, uma praia de pescadores, era servida
por três portas. Para a ocidental, o porto por excelência, por possuir um cais
de pedra do tempo dos romanos, abriam duas portas e dois pequenos postigos.
Debaixo
do sol escaldante, os cruzados alemães e flamengos ocuparam as três semanas
seguintes a construir cinco fundas baleares e os ingleses uma torre móvel com
mais de noventa pés de altura. Serviam--se da madeira dos pinheiros que
abundavam nas florestas circundantes. Também se planeava a construção de minas
até aos fundamentos das muralhas. Estes seriam, então, substituídos por traves
de madeira, às quais se chegaria o fogo, provocando a queda dos muros. As
fundas baleares, também chamadas trabucos, usavam-se
para lançar pedregulhos. Uma base servia de apoio a dois postes com sete a dez
pés de altura. Entre estes postes, montava-se um eixo, que permitia mover o
braço de arremesso. Num dos seus extremos, este braço possuía um recipiente,
que, cheio de areia, serviria de contra-peso. No outro extremo, pendurava-se
uma bolsa, dentro da qual se colocaria a rocha a lançar.
Konrad
sabia que existiam fundas baleares enormes, capazes de arremessar rochas com
mais de 50 arráteis de peso, mas para isso faltava-lhes o ferro. Tudo tinha que
ser feito em madeira, incluindo o eixo que movia o comprido braço de arremesso,
de maneira que estes cinco trabucos se limitariam a lançar pedras de, no
máximo, 20 arráteis. Devido à situação da cidade, a torre dos ingleses só
poderia ser utilizada junto ao rio, pois, noutros pontos, seria impossível
galgar as rochas que serviam de alicerce às muralhas. A alcáçova, situada no
ponto mais alto, apresentava o problema mais difícil de resolver. Os
portugueses, que a controlavam, esperariam para ver no que dava o primeiro
ataque dos cruzados, que, quanto mais não fosse, serviria para provocar baixas
e desgastar o inimigo. Os cruzados escolheram o dia 3 de Agosto para o seu
ataque. Com as fundas baleares posicionadas entre a torre albarrã, que protegia
a Porta de al-hammã, e a ponta sudeste, junto à praia, flamengos e alemães
esforçar-se-iam por abrir uma fenda na muralha. Por seu lado, os ingleses
tentariam, com a sua torre móvel, alcançar as muralhas em frente ao porto, a
zona entre a torre albarrã e uma das Portas do Mar.
Não
só a construção dos engenhos fora trabalho pesado, também a sua utilização o
era. Konrad, o irmão, os seus dois amigos e mais alguns homens preparavam o
trabuco para o lançamento do pedregulho. Com a ajuda de cordas, puxavam o braço
de arremesso para junto do solo. Carregavam o pedregulho para dentro da bolsa
preparada para o efeito e, quando tudo estava a postos, o braço era largado e a
pedra voava em direcção às muralhas. Para melhor se protegerem, os cruzados
haviam construído paliçadas à volta das fundas baleares. As suas vestes
acolchoadas, chamadas gibões, não resistiriam a um tiro certeiro de besta, que
poderia mesmo perfurar a cota de malha de Konrad. A besta era bem mais eficaz
do que o arco. Apesar de a sua cadência de tiro ser lenta, pois demorava a
carregar, os projécteis atingiam distâncias mais longas e tinham muito maior poder de penetração. Maldito
sol, praguejou Johann, limpando o suor do rosto com a manga. Konrad sorriu
irónico. Eleja calculara que o sol seria de amaldiçoar, assim que começasse o
trabalho duro. A ele até lhe custava menos a aguentá-lo, pois habituara-se
durante três anos a suar à boca do forno do ferreiro. E já aprendera,
observando os cavaleiros portugueses: vestia sempre uma túnica por cima da sua
cota de malha, para evitar que o metal sobreaquecesse. Muitos dos cruzados já
sofriam de insolação, nomeadamente aqueles que, durante a construção dos
engenhos, haviam despido as suas vestes, um gesto espontâneo em gente que não
estava habituada a tais calores». In Cristina
Torrão, A Cruz de Esmeraldas, Edição Ésquilo, 2009, ISBN 978-989-809-261-8.
Cortesia
de Ésquilo/JDACT