«(…) Enquanto os dois irmãos
debatiam os valores morais e os princípios a transmitirem aos filhos, um criado
veio, silencioso como o vento, anunciar: senhor, está lá fora um enviado de
Ithacio com um mandato na mão… Um mandato?! O seu estômago apertou-se e o coração
acelerou, enquanto os olhos se abriam e o rosto ruborescia. Um mandato?, continuava a remoer.
Algo de grave acontecera ou estaria para acontecer. Sim, ordena que amanhã,
depois do prandium, o
senhor Lucídio Danígico Tácito se apresente no palácio… Que pretende esse
Ithacio?! Nós a falarmos nele e lá aparece a sombra do abutre! O que achas que
pode querer, Sabino?! Não sei… Mas coisa boa não será certamente! Esse homem é
muito astucioso. Toma cuidado, meu irmão! Lucídio passou a noite em claro. E o
caso não era para menos!
Aseconia
(Santiago de Compostela)
Iria Flavia (Padrón)
Mais a norte, na Villa Aseconia,
a notícia do nascimento do pequeno Prisciliano correra como uma flecha pelas
bocas e orelhas dos habitantes. Colonos, criados e escravos bendisseram os
deuses pelo bom augúrio dos céus à casa, sinal de descendência para assegurar a
grande fortuna dos Danígicos e garantir a vida aos seus habitantes e respectivas
gerações. Mas nem todos estavam felizes. Num dos homens da villa habitava um espírito de
gosto diferente: o do ódio e da vingança. Passava o tempo a remorder-se com a
sua má fortuna e aproveitava as sombras da noite para recorrer à magia negra,
conjurando para que a criança não sobrevivesse. Por essa, ou por outras razões
certificadas pelo destino, a desgraça abeirou-se, entretanto, da porta de
Priscila, tornando-a numa mulher inconsolável. A notícia dos maus presságios
correu igualmente por campos e vales, montes e outeiros, até se alojar nos corações
dos habitantes da villa com
a força de um tição ardente: o pequeno Prisciliano estava doente e definhava,
dia após dia.
Valéria, ai que desgraça! Vai
morrer o pobre Prisciliano! E nem tenho Lucídio comigo! A anciã suspirou.
Afligia-se de remorsos com a cisma de que tivesse cometido alguma imprudência
durante o parto e afectado os humores da criança. Mas, recordando cada um dos passos,
tudo lhe parecia perfeito! Estava ciente de que, apesar das dificuldades, o
parto correra bem. Tal como Priscila, Valéria não mais dormira nas noites que
se lhe seguiram. O pequeno, por razões que lhe escapavam, não queria
alimentar-se. O pouco leite que engolia era dado à força de muita insistência,
e apenas o dos seios maternos. Recusava-se a mamar nos de qualquer escrava,
pelo que a mãe vazava o leite para uma tigela de vidro, que Valéria, a muito
custo, o fazia engolir.
Um
dia, a velha parteira ouviu casualmente as conversas dos escravos. Desde que o pequeno
Danígico chegara ao mundo que não parara de chover! Sabendo que Priscila era devota
de Ísis, eles murmuravam que tantos dias de chuva só podiam significar as lágrimas
da deusa pela má sorte da fervorosa devota e do seu filho. E se Ísis chorava,
como chorava desde os tempos primordiais de cada vez que as águas do Nilo
transbordavam, lembrando a imensa tristeza pela morte de Osíris, seu eterno
esposo, urgia acudir-lhe depressa para apaziguar-lhe os sofrimentos. Talvez fizessem
sentido os cicios dos escravos e colonos devotos da deusa oriental, para eles a
verdadeira mãe dos deuses, aquela que assegurava a justiça aos pobres e
oprimidos e o abrigo aos mais fracos». In Alberto S. Santos, O Segredo de
Compostela, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-068-096-9.
Cortesia de PEditora/JDACT