quinta-feira, 14 de março de 2019

Afonso Henriques. O Homem. Cristina Torrão. «Afonso mandou-a entrar. Belmira surgiu descalça, envergando apenas um vestido de linho grosseiro. Nem sequer trazia um xaile pelos ombros…»

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«(…) Afonso VII recebeu-os inesperadamente satisfeito, congratulando-se por finalmente travar conhecimento com o infante portucalense e felicitando-o pela sua investidura. Envergava uma túnica vermelha debruada a fios de ouro no decote, nos punhos largos e na bainha. Adornavam-na as armas de Leão e Castela: um leão vermelho rampante sobre fundo prateado e um castelo dourado sobre fundo escarlate. Afonso crera que o primo o igualasse em altura, mas era um palmo mais baixo. Usava o cabelo mais curto e o bigode caía-lhe mortiço sobre os lábios finos. O seu olhar possuía algo de baço e o jovem portucalense achava-se incapaz de dizer se a satisfação que deles transparecia era genuína. As conversações decorreram em ambiente ameno e nem a questão da Galiza exaltou o jovem soberano. Sem deixar de sorrir, el-rei Afonso VII alegou ter assuntos urgentes a resolver com o monarca aragonês, pelo que propôs adiar a questão da homenagem e da herança da tia, solicitando a assinatura de um pacto, pelo qual dona Teresa se comprometia a guardar a paz durante um ano. Assim se fez.

Um lacaio anunciou a chegada dos irmãos Soeiro e Gonçalo Mendes Sousa a Guimarães, onde Afonso se encontrava com Egas Moniz e os seus dois filhos mais velhos. Acabada a sua instrução, o infante, assim chamado por sua mãe se intitular rainha, fizera de Guimarães a sua residência oficial e havia novamente transformado o segundo andar da torre de menagem num aposento digno de príncipe. Soeiro Mendes Grosso e o irmão Gonçalo vinham, mais uma vez, discutir a situação do condado, que se continuava a degradar. Afonso tivera razão: o facto de dona Teresa ter promovido a sua investidura de cavaleiro, não apaziguara os barões portucalenses. Ao insistir na sua ligação com Fernão Peres Trava, a rainha estava mais isolada do que nunca. O próprio Afonso deixara, naquele ano de 1127, de ir à corte coimbrã, já não subscrevia os diplomas de sua mãe. Os rumores de que a questão só se resolveria pela força das armas aumentavam de tom. Naquele serão frio de Outubro, os senhores reunidos em Guimarães especulavam sobre a questão da homenagem que dona Teresa deveria prestar a Afonso VII. O pacto de não-agressão por um ano, assinado em Ricobayo, já perdera a validade. O jovem monarca passara a Primavera e o Verão na fronteira castelhano-aragonesa, mas encontrava-se na Galiza, desde Setembro, exigindo o reconhecimento da sua autoridade por parte de certos senhores que, à semelhança de dona Teresa, ainda não lhe haviam prestado homenagem. E havia quem dissesse que planeava submeter a sua tia pela força.
Quando Egas Moniz e Soeiro Mendes acusaram cansaço e resolveram recolher-se, os mais novos ainda não sentiam sono. A fim de continuarem o seu convívio, Afonso levou os três amigos para o conforto da sua câmara e combinavam uma caçada ao javali, quando um lacaio veio segredar ao ouvido do infante que Belmira acabara de chegar. A moça vinha mais cedo do que o planeado, mas, para que ela não esperasse na antecâmara fria, Afonso mandou-a entrar. Belmira surgiu descalça, envergando apenas um vestido de linho grosseiro. Nem sequer trazia um xaile pelos ombros e o príncipe perguntou-se como é que ela ali conseguia chegar naqueles preparos, numa noite fria. Sorria, despreocupada, e Afonso notou como também os seus companheiros se encantavam com os olhos brilhantes e os cabelos ondulados da rapariga, que lhe caíam singelos pelas costas. Sem lhe dirigir palavra, o príncipe fez-lhe sinal que se sentasse a um canto da mesa e logo encetou a conversa com os amigos, sem, porém, deixar de notar a satisfação com que Belmira encarou as fatias de presunto, as rodelas de chouriça e o pão fofo de trigo, enriquecido com leite e ovos. Em momentos destes, Afonso perguntava-se se a moça sentia afeição por ele, ou via apenas as vantagens materiais que ele lhe proporcionava. Além das iguarias, Belmira apreciava o facto de ele, em tempo frio, não se preocupar em apagar a lareira do aposento, ao deitar-se, a fim de poupar lenha. Além disso, estava convencida de que nada no mundo poderia ser mais fofo do que o leito do príncipe. Talvez as nuvens o fossem, dizia, mas essas pairavam no céu e serviam de abrigo aos anjos. Afonso também a deixava ir à cozinha buscar restos dos enchidos e dos assados, que ela levava à mãe e aos irmãos pequenos». In Cristina Torrão, Afonso Henriques, O Homem, Edição Ésquilo, 2008, ISBN 978-989-809-249-6.

Cortesia de EÉsquilo/JDACT