terça-feira, 10 de março de 2020

1984. George Orwell. «No interior do apartamento, uma voz agradável lia alto uma relação de cifras que de alguma forma dizia respeito à produção de ferro-velho»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Era um dia frio e luminoso de Abril, e os relógios davam treze horas. Winston Smith, queixo enfiado no peito no esforço de esquivar-se do vento cruel, passou depressa pelas portas de vidro das Mansões Victory, mas não tão depressa que evitasse a entrada de uma lufada de poeira arenosa junto com ele. O vestíbulo cheirava a repolho cozido e a velhos capachos de pano trançado. Numa das extremidades, um poster colorido, grande demais para ambientes fechados, estava pregado na parede. Mostrava simplesmente um rosto enorme, com mais de um metro de largura: o rosto de um homem de uns quarenta e cinco anos, de bigodão preto e feições rudemente agradáveis. Winston avançou para a escada. Não adiantava tentar o elevador. Mesmo quando tudo ia bem, era raro que funcionasse, e agora a eletricidade permanecia cortada enquanto houvesse luz natural. Era parte do esforço de economia durante os preparativos para a Semana do Ódio. O apartamento ficava no sétimo andar e Winston, com os seus trinta e nove anos e a sua úlcera varicosa acima do tornozelo direito, subiu devagar, parando para descansar várias vezes durante o trajecto. Em todos os patamares, diante da porta do elevador, o poster com o rosto enorme fitava-o da parede. Era uma dessas pinturas realizadas de modo a que os olhos o acompanhem sempre que se move. O grande irmão está de olho em você, dizia o letreiro, em baixo.
No interior do apartamento, uma voz agradável lia alto uma relação de cifras que de alguma forma dizia respeito à produção de ferro-velho. A voz saía de uma placa oblonga de metal semelhante a um espelho fosco, integrada à superfície da parede da direita. Winston girou um interruptor e a voz diminuiu um pouco, embora as palavras continuassem inteligíveis. O volume do instrumento (chamava-se teletela) podia ser regulado, mas não havia como desligá-lo completamente. Winston foi para junto da janela: o macacão azul usado como uniforme do Partido não fazia mais que enfatizar a magreza de seu corpo frágil, miúdo. Seu cabelo era muito claro, o rosto naturalmente sanguíneo, a pele áspera por causa do sabão ordinário, das navalhas cegas e do frio do inverno que pouco antes chegara ao fim. Fora, mesmo visto através da vidraça fechada, o mundo parecia frio. Lá em baixo, na rua, pequenos remoinhos de vento formavam espirais de poeira e papel picado e, embora o sol brilhasse e o céu fosse de um azul áspero, a impressão que se tinha era de que não havia cor em coisa alguma a não ser nos posteres colados por toda a parte. Não havia lugar de destaque que não ostentasse aquele rosto de bigode negro a olhar para baixo. Na fachada da casa logo do outro lado da rua, via-se um deles. o grande irmão está de olho em você, dizia o letreiro, enquanto os olhos escuros pareciam perfurar os de Winston. Em baixo, no nível da rua, outro poster, esse com um dos cantos rasgado, adejava operosamente ao vento, ora encobrindo, ora expondo uma palavra solitária: Socing. Ao longe, um helicóptero, voando baixo sobre os telhados, pairou um instante como uma libélula e voltou a afastar-se a grande velocidade, fazendo uma curva. Era a patrulha policial, bisbilhotando pelas janelas das pessoas. As patrulhas, contudo, não eram um problema. O único problema era a Polícia das Ideias.
Por trás de Winston, a voz da teletela continuava sua lenga-lenga infinita sobre o ferro-velho e o total cumprimento, com folga, das metas do Nono Plano Trienal. A teletela recebia e transmitia simultaneamente. Todo o som produzido por Winston que ultrapassasse o nível de um sussurro muito discreto seria captado por ela; mais: enquanto Winston permanecesse no campo de visão enquadrado pela placa de metal, além de ouvido também poderia ser visto. Claro, não havia como saber se você estava sendo observado num momento específico. Tentar adivinhar o sistema utilizado pela Polícia das Ideias para conectar-se a cada aparelho individual ou a frequência com que o fazia não passava de especulação. Era possível inclusive que ela controlasse todo mundo o tempo todo. Fosse como fosse, uma coisa era certa: tinha meios de conectar-se a seu aparelho sempre que quisesse. Você era obrigado a viver, e vivia, em decorrência do hábito transformado em instinto, acreditando que todo o som que fizesse seria ouvido e, se a escuridão não fosse completa, todo movimento examinado meticulosamente». In George Orwell, 1984, 1949, Editora Antígona, 2012, ISBN 978-972-608-189-0.

Cortesia de EAntígona/JDACT