Cortesia
de wikipedia e jdact
«Era
um dia frio e luminoso de Abril, e os relógios davam treze horas. Winston
Smith, queixo enfiado no peito no esforço de esquivar-se do vento cruel, passou
depressa pelas portas de vidro das Mansões Victory, mas não tão depressa que
evitasse a entrada de uma lufada de poeira arenosa junto com ele. O vestíbulo
cheirava a repolho cozido e a velhos capachos de pano trançado. Numa das
extremidades, um poster colorido, grande demais para ambientes fechados, estava
pregado na parede. Mostrava simplesmente um rosto enorme, com mais de um metro
de largura: o rosto de um homem de uns quarenta e cinco anos, de bigodão preto
e feições rudemente agradáveis. Winston avançou para a escada. Não adiantava
tentar o elevador. Mesmo quando tudo ia bem, era raro que funcionasse, e agora
a eletricidade permanecia cortada enquanto houvesse luz natural. Era parte do
esforço de economia durante os preparativos para a Semana do Ódio. O
apartamento ficava no sétimo andar e Winston, com os seus trinta e nove anos e a
sua úlcera varicosa acima do tornozelo direito, subiu devagar, parando para
descansar várias vezes durante o trajecto. Em todos os patamares, diante da
porta do elevador, o poster com o rosto enorme fitava-o da parede. Era uma
dessas pinturas realizadas de modo a que os olhos o acompanhem sempre que se
move. O grande irmão está de olho em você, dizia o letreiro, em baixo.
No
interior do apartamento, uma voz agradável lia alto uma relação de cifras que
de alguma forma dizia respeito à produção de ferro-velho. A voz saía de uma
placa oblonga de metal semelhante a um espelho fosco, integrada à superfície da
parede da direita. Winston girou um interruptor e a voz diminuiu um pouco, embora
as palavras continuassem inteligíveis. O volume do instrumento (chamava-se
teletela) podia ser regulado, mas não havia como desligá-lo completamente.
Winston foi para junto da janela: o macacão azul usado como uniforme do Partido
não fazia mais que enfatizar a magreza de seu corpo frágil, miúdo. Seu cabelo
era muito claro, o rosto naturalmente sanguíneo, a pele áspera por causa do sabão
ordinário, das navalhas cegas e do frio do inverno que pouco antes chegara ao
fim. Fora, mesmo visto através da vidraça fechada, o mundo parecia frio. Lá em baixo,
na rua, pequenos remoinhos de vento formavam espirais de poeira e papel picado
e, embora o sol brilhasse e o céu fosse de um azul áspero, a impressão que se
tinha era de que não havia cor em coisa alguma a não ser nos posteres colados
por toda a parte. Não havia lugar de destaque que não ostentasse aquele rosto
de bigode negro a olhar para baixo. Na fachada da casa logo do outro lado da
rua, via-se um deles. o grande irmão está de olho em você, dizia o letreiro,
enquanto os olhos escuros pareciam perfurar os de Winston. Em baixo, no nível
da rua, outro poster, esse com um dos cantos rasgado, adejava operosamente ao
vento, ora encobrindo, ora expondo uma palavra solitária: Socing. Ao longe, um
helicóptero, voando baixo sobre os telhados, pairou um instante como uma libélula
e voltou a afastar-se a grande velocidade, fazendo uma curva. Era a patrulha
policial, bisbilhotando pelas janelas das pessoas. As patrulhas, contudo, não
eram um problema. O único problema era a Polícia das Ideias.
Por trás de Winston, a voz da
teletela continuava sua lenga-lenga infinita sobre o ferro-velho e o total
cumprimento, com folga, das metas do Nono Plano Trienal. A teletela recebia e
transmitia simultaneamente. Todo o som produzido por Winston que ultrapassasse
o nível de um sussurro muito discreto seria captado por ela; mais: enquanto
Winston permanecesse no campo de visão enquadrado pela placa de metal, além de
ouvido também poderia ser visto. Claro, não havia como saber se você estava
sendo observado num momento específico. Tentar adivinhar o sistema utilizado pela
Polícia das Ideias para conectar-se a cada aparelho individual ou a frequência
com que o fazia não passava de especulação. Era possível inclusive que ela
controlasse todo mundo o tempo todo. Fosse como fosse, uma coisa era certa:
tinha meios de conectar-se a seu aparelho sempre que quisesse. Você era
obrigado a viver, e vivia, em decorrência do hábito transformado em instinto,
acreditando que todo o som que fizesse seria ouvido e, se a escuridão não fosse
completa, todo movimento examinado meticulosamente». In George Orwell, 1984, 1949,
Editora Antígona, 2012, ISBN 978-972-608-189-0.
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